(Ode à ironia)
A
música soava dentro do seu ouvido, tão melancólica quanto ele. A ambos – a ele
e à música – agradavam a voz sussurrante de Joan Osbourne. Há músicas que
gostam dos seus intérpretes; na maioria das vezes, elas não os suportam.
Veio o metrô. Seis
pessoas aguardando na porta. Ele e mais cinco. Seis. Ao todo, meia-dúzia de
almas à espera de que as portas se abrissem, tomando sempre cuidado, é claro, com
o vão entre o trem e a plataforma. As portas se abriram. Muita gente
atrapalhando a saída dos que não queriam mais prosseguir; a mesma muita gente
atrapalhando, de novo, o embarque dos que queriam sair dali. Ele só queria
isso, mesmo: sair dali. Saíram dezenove pessoas. Dezenove. Havia, agora,
dezenove micro-espaços vazios dentro daquele metrô. Mas entraram apenas cinco.
Não havia mais espaço para ele. Todos os dezenove micro-espaços foram
preenchidos por cinco micro-almas. Tentou forçar a entrada; o sujeito que
estava na porta decidiu que aqueles eram seus micro-espaços e que não abriria
mão deles. E o sujeito da porta era mais forte.
Resignou-se. Tudo bem;
nem queria ir naquele metrô lotado, afinal. Aguardaria
o próximo. What if God was one of us? Just a stranger on the bus? Não queria
pensar mais nisso. São só três minutos entre um trem e outro.
Oito minutos depois, as
portas do próximo trem se abriram. Desta vez, ele era o primeiro da fila;
entrou – ou foi “entrado” pelos que o empurravam – e foi para o meio do
corredor. Iria descer apenas na última estação; o melhor era mesmo ficar ali,
longe do tumulto das portas. “O cientista imbecil que
disse que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço com certeza
nunca precisou pegar metrô em horário de pico”, pensou.
À sua frente, nos bancos
reservados, havia um casal sentado. Ambos não aparentavam mais de vinte anos;
falavam alto, riam alto e, pelo que ele pôde perceber, estavam achando que a
conversa era sensacional, pois faziam questão de que todos no vagão a ouvissem.
O banco era reservado para idosos, gestantes, pessoas com deficiência ou com
crianças de colo. Como já foi dito, ainda demoraria algumas décadas para que
pudessem ser classificados como idosos. Também não conseguiu perceber nenhuma criança,
fosse no colo, fosse no ventre da moça. Procurou em vão por alguma deficiência;
tudo o que conseguiu encontrar foi um idoso em pé, ao seu lado, lutando contra
o aperto dos outros usuários. Conformou-se: “Talvez o aviso de uso preferencial
também contemple deficiência mental, e, neste caso, a questão fica explicada”.
O trem do metrô vai
enchendo e esvaziando inúmeras vezes. Numa destas, ele consegue sentar-se ao
lado de um rapaz. O rapaz senta-se com desleixo e suas pernas abertas
atrapalham; “Cidadão, ocupe só a sua parte no assento”, pensa.
Mas apenas pensa. Tudo o
que ele faz na vida é pensar. Já discutiu com líderes do Bloco Comunista, já
resolveu questões diplomáticas no Oriente Médio. Já teve as mais belas atrizes
de Hollywood, nuas, na sua cama, a aguardá-lo. Tudo nos seus pensamentos. Já
foi ouvido e respeitado, já foi carismático e engraçado, já foi sedutor e
misterioso. Tudo, tudo dentro dos seus pensamentos, ocupando micro-espaços como
num metrô.
Resolve que vai ler.
Pega um livro da mochila, abre na página marcada. É Ulysses, de James Joyce. Um
longo dia de mil e trezentas folhas. O rapaz ao seu lado fala alguma coisa;
tudo o que ele ouve é: “Apenas um desajeitado como qualquer um de nós, tentando
fazer seu caminho para casa”. Gosta desta música. Hoje decidiu que irá
escutá-la, e somente a ela, a manhã inteira. Yeah, God is good.
O rapaz tenta novamente;
desta vez, entre o fim e o recomeço da mesma música:
- Olha aí, lendo
Ulysses! Gente que pega trem não costuma ler nem horóscopo!...
Não diz nada. Apenas
retribui o sorriso que o rapaz lhe concedeu. “Você nunca vê ninguém lendo
Ulysses, e, quando vê, tenta atrapalhar”, pensa. Mas só pensa.
- Pois continue assim! O
mundo precisa de mais gênios humildes! Hoje em dia somos poucos… - o rapaz fala
e o encara, como a se certificar que ele entendeu a piada.
Devolve o olhar, desta
vez carregado de uma dupla indignação: a primeira, pelo fato do rapaz ter a
audácia de imaginar que ele não entenderia uma frase tão primária; a segunda,
por achar que, ao entende-la, a apreciaria. Voltou ao seu livro. O rapaz
também:
- Sabia que Joyce é uma
das leituras mais difíceis que existe? Ele é cheio de citações veladas, de
referências ocultas a obras anteriores... Sabia que é tão difícil que existem
até livros que ensinam a ler Ulysses?
Olhou em volta; talvez
tivesse algum outro banco vazio. Um banco com uma senhorinha cochilando, que
lhe daria a paz necessária para continuar a leitura. Mas – droga! – não havia.
Pensou em se levantar e sair na próxima estação; poderia entrar no vagão do
lado, ou mesmo na porta do lado, e continuar sua viagem em pé. Mas seria
difícil segurar o livro. Suspirou fundo e proferiu suas primeiras palavras no
dia, esperando de coração que já fossem, também, as últimas:
- Eu não estou lendo,
não. Só estou vendo as figuras.
O rapaz olhou o livro
novamente. Não havia figuras. Percebeu que era a deixa para ficar calado.
Levantou-se pouco antes
do trem parar na última estação. Havia uma senhora sentada à sua frente. A
senhora levantou-se e, mesmo não havendo espaço, forçou para ficar entre ele e
a porta, para descer primeiro. Era uma senhora baixa, um tanto obesa, de
chinelos de dedo e saia puída, com uma blusa de lã. Jamais teria sido a
primeira em qualquer coisa que fosse: não foi a primeira aluna do colégio, não
foi a primeira namorada do seu finado marido, não foi a primeira a ser
escolhida para o baile de fim de ano. Hoje ela deve ter se levantado com o
firme propósito de ser a primeira em alguma cosia, nem que fosse a descer do
trem. Ela tinha que estar na frente, em alguma hora da vida! “Ok, minha
senhora, eu deixo a senhora sair primeiro. Todos vão descer, esta é a última
estação... Não dava para aguardar sentada mais uns dez segundos? A senhora
perderia dez segundos mas não precisaria empurrar ninguém. Mas, ok, pode sair”.
Não, não dava para
aguardar nem mesmo dez segundos. Ela se levantou do banco – um espaço que já
era dela e só dela – e foi lutar pelos micro-espaços da área das portas. Nada
de dez segundos. Nem esses dez míseros segundos ela estava disposta a perder
hoje. Hoje ela seria a campeã de sair primeiro do trem, custasse o que
custasse. And would you want to see, if
seeing mean that you would have to believe in
things like heaven and Jesus and the saints, and all the prophets? Ah, Joan Osbourne!...
Como te invejo por não precisar pegar trens! Ah, Deus! Como deve ser bom chegar
num avião celestial!
Na saída da estação há a
escada tradicional e a escada rolante. Na escada rolante existe uma regra: as
pessoas à direita podem ficar paradas, apenas esperando a própria escada fazer
o seu papel, que é de rolar de um piso ao outro, levando as pessoas que estão no
andar de baixo até o andar de cima. As pessoas à esquerda estão com pressa:
aproveitam a ajuda da escada rolante para subir a escada usando as próprias
pernas; assim potencializam os serviços das pernas e da escada. E ganham, em
média, dez segundos. Mais fácil do que empurrar os outros para sair do trem.
Mas, nesta escada, havia
um novo visitante que achava que tanto à esquerda quanto à direita deve-se ficar
esperando a escada subir. Ainda não havia lido todo o regulamento nem havia
compreendido as regras obscuras das estações, regras que não são escritas, mas
tacitamente cumpridas. Era um velho de roupas rasgadas, que gritava com todos
os outros usuários do sistema; gritava coisas impossíveis de serem
compreendidas entre os versos que antecediam o refrão. “Yeah, God is great,
yeah, God is good.”
Não ligou. Não estava
com pressa; o velho que gritasse o quanto quisesse, o velho que ficasse parado
na escada, o velho que fosse ao diabo. Só queria sair logo de debaixo da terra,
poder ver o sol, poder atravessar a rua em frente ao metrô; poder seguir a sua
vida, enfim. O velho que se dane.
Mas o velho não queria
se danar; o velho queria simplesmente incomodar os transeuntes, como se estes
fossem culpados pela poluição das cidades, a crucificação de Cristo ou o
aquecimento global. O velho vociferava e era possível escutar, entre o fim do
refrão e o solo de guitarra, um ou outro palavrão.
Pensou que o velho fosse
um destes pregadores que ficaram senilmente debilitados depois de tanta pregação
inútil. O velho teria se tornado um louco que acha que gritar sobre a Bíblia
nas ruas fará uma grande revolução cristã no universo, ou, pelo menos, que
desta forma ele conseguiria barganhar um lugarzinho no céu. Um micro-espaço
celestial.
Então ele deixaria o
velho gritando à sua frente, até acabar o curso da escada rolante, e
simplesmente desviaria do velho ao emergir na calçada. O velho ficaria por lá,
gritando coisas como “Yeah, God is great; yeah, God is good”, mesmo que nem
conhecesse a música. E ele seguiria
com o resto das frases, if you were faced with him in all his glory? What would
you ask if you had just one question?
Mas o velho não era um
senil religioso. O velho tinha uma arma e começou a atirar a esmo.
A bala poderia ter atingido a senhora obesa, caso ele tivesse sido deselegante e saído antes dela. A bala poderia ter atingido o sujeito forte da estação de origem. A bala poderia ter atingido a parede da loja, caso ele não tivesse sido atrapalhado na escada rolante. Mas, por uma questão que pode ser de oito minutos ou dez segundos, dependendo do ponto de vista de quem está contando a história, a bala acabou atingindo seu
crânio pelo micro-espaço da fenestração temporal, destruindo, ao mesmo tempo, o fone de ouvido
esquerdo, o seu próprio crânio, o seu próprio cérebro e o final da estrofe mais
bonita de Joan Osbourne: Trying to make his way home. Ele caiu sem cerimônia
sobre uma poça d’água perto da guia; seu sangue desenhando fractais modulantes
dentro da água suja. Seus olhos não chegaram a se fechar, e ele pode sentir os
restos do impulso elétrico que ainda tentava dar curtos-circuitos nos restos do
cérebro; sua pálpebra a tentar pulsar sobre o azul da íris.
Just
trying to make his way home, back up to heaven all alone.