Normalmente, ao escrever sobre música, tento tomar alguns cuidados. Tenho muitos amigos músicos, e, mesmo que ninguém nunca leia as minhas histórias, sempre há algum mais desocupado que repara nos erros. Mas esta vai sem filtro, mesmo; há histórias que se valem, senão pela acuidade das informações, ao menos pelas palavras em si. Não sei se esta valerá por uma ou por outra, mas, enfim, ela está sendo burilada.
Há músicas que me fazem mudar de ânimos, me fazem acreditar que o espírito humano ainda é capaz de algumas façanhas; me fazem acreditar, ainda que por um instante, que existe um Deus em algum lugar e que Ele se compraz com os sons divinais do Éden e que, depois, venha até nós, até algum dos seus escolhidos, e entre sussurros diga: "Ei, que tal se você colocasse um La menor em arpeggio ali?" ou "Já pensou em fazer esta parte em colcheias ascendentes?". Mesmo que este Deus efêmero que habita meus devaneios tenha mais o que fazer para salvar o mundo, e não tenha muito tempo de sobra para solfejar ditados melódicos a ouvidos incautos, para que estes se transformem em sons para ouvidos ainda mais incautos, tenho que admitir que alguns sons não parecem provir de uma mente imperfeita e em início de evolução biológica.
Bach compôs "Jesu, bleibt in meinen Freund". Beethoven criou sua versão da alegria, a nona Sinfonia, “Ode an die Freunde”, e Debussy, em sua “Claire de Lune”, disse que essa história de alegria é coisa de alemão. Sivuca fez sua "Subindo aos Céus", Robert Plant e Jimmy Page imaginaram campos e montanhas Tolkenianas em sua "The Rain Song" e Chico Buarque nos mostrou o poder das suas palavras em "Todo Sentimento". Em todas elas, a mesma presença constante da genialidade.
Quando ouço algumas dessas pérolas, não me preocupo com o autor. Beethoven maltratava o sobrinho, ao ponto de este tentar o suicídio. Bach era extremamente rígido com os filhos, um protestante que vendia serviços à Igreja Católica – algumas das suas maiores obras, incluindo “Jesu”, adoravam um Deus no qual Bach não acreditava. Plant e Page envolveram-se com magia negra, e morte do filho mais novo de Plant, vítima de uma doença misteriosa, até hoje não foi esclarecida; e o Chico perdeu-se no tempo e ainda defende antigos amigos da “revolução”, sem se dar conta que a revolução nunca foi em nome de classe nenhuma e que os antigos “subversivos” hoje representam a velhacaria dominante e corrupta. Não; os autores não são divinos nem iluminados. Só souberam usar melodias e palavras com técnica e talento. No fundo, tudo se resume a sucessões de letras e de frequências. Mas algumas letras e algumas frequências são melhor sucedidas que outras, afinal.
Se Chico resolver colocar toda a sua genialidade numa obra em homenagem à Dilma, e se esta obra for uma obra-prima, vou gostar, aplaudir e ouvir com prazer. Não preciso gostar de Dilma para gostar da música; nunca gostei da Ligia nem da Angélica nem da Beatriz nem da Bárbara nem da Iolanda nem da Rita nem da Rosa. Mas amei as músicas dedicadas a cada uma delas. Não preciso gostar do que dizem as palavras, basta gostar da forma como foram ditas. Não acredito no Deus de Bach nem nas montanhas de Plant. Não acredito no amor platônico à luz da lua. Mas acredito na afinação trocada no violão de Page, no oboé perambulante de Johann e nas marcações de tempo dúbias de Debussy e dos metais batendo no fole da sanfona de Sivuca. A mim pouco importa se Beethoven era um velho surdo e mesquinho: sua Ode é a Ode de uma criança livre e feliz.
Pronto. Agora todos os meus amigos músicos podem usar os comentários para me esculachar à vontade – isso se alguém estiver mesmo disposto a perder tanto tempo. Mas, antes, ouçam as músicas: tenho certeza de que, depois de ouvirem, o esculacho virá bem mais brando...