terça-feira, 27 de setembro de 2022

PREGUIÇA

 Ainda está escuro. Tento abrir os olhos, um de cada vez. As pontas dos cabelos me revelam que o frio é intenso lá fora; o frio é intenso mesmo ali dentro do meu quarto, fora do universo que se encerra abaixo do meu edredom. Um dos olhos abertos tenta dar uma esticada até o relógio, para saber as horas; a íris reclama do frio que bombardeia o globo ocular, e a pálpebra volta a protege-la. O outro olho tenta; agora é a sua vez. São seis e quarenta e oito, é o que consegue decifrar a retina. Quarenta e oito!

Faço um movimento com a perna. Um mísero movimento. Ela sai do seu lugar de conforto e vai para um canto mais frio da cama, aquele canto que o edredom não aqueceu porque, até aquele momento, não havia nenhuma perna ali para ser aquecida. O edredom é um ser inteligente: usa seu poder de aquecimento em pontos específicos da cama, justamente para proteger aquele que lhe é senhor. Volto correndo com a perna ao lugar de origem; este será o último movimento que farei com esta perna.

Estico a mão e pego o controle da TV. Está passando um documentário em alemão sobre a Tchecoslováquia. Deixo o volume no mínimo para não acordar minha amada; ela não gosta de tchecos ou alemães, não gosta de documentários invadindo a madrugada e, como eu, não gosta de ter que acordar em manhãs de frio. No mundo dos sonhos da minha amada, ela nem faz questão de saber que existiu, em algum tempo e lugar, um país que era dois, depois de ter sido vários, e que acabou virando nenhum. Ela não precisa entender alemão em seu träumerei. Tampouco eu preciso entender o que dizem: a mim basta que meus olhos se movimentem um pouco, que os tímpanos se aqueçam, que o cérebro comece a pegar no tranco. As ruas tchecas são tão frias quanto o mundo lá fora. A voz do narrador alemão vem embargada daquele vapor que nos sai da boca nos dias frios; vem sedenta e carente de um bom conhaque para aquecê-la. Hitze, bitte!

Há chuva lá fora. As gotas batem na janela e no telhado, e parecem que vão acabar escorrendo ali, na minha cama. Sinto mentalmente o pingar nas roupas, no chão, sinto calafrios imaginários, sinto que preciso me levantar e ir trabalhar logo. Sinto frio e sinto que o mundo lá fora não importa, seja aqui ou na antiga Tchecoslováquia, seja heute, gestern ou langen Zeit. Deixa a chuva lá fora no mundo que imagino ser real; é aqui que quero ficar, com minha amada e meu edredom, no meu universo particular. Quero ficar aqui, abraçado a ela, sentindo o calor do seu corpo a dormir, sentindo que poderia ficar ali por milhares de quarenta-e-oitos minutos, sem me cansar. 

Mas o despertador desperta. Cumpre sua função, de fazer barulho e se tornar insuportável. Cumpre sua função, de destruir com um ruído todo aquele universo maravilhoso de instantes atrás, e, ao mesmo tempo, fazer o ruído das gotas parecerem um atrativo a mais para sair da cama. O despertador desperta, como a me dizer: “E agora? Vai me dar atenção ou eu vou ter que ficar aqui, gritando com você?”, sendo que o simples fato de prestar atenção em qualquer coisa já me faz entender que estou acordado, que não há mais volta, que chove lá fora e a Tchecoslováquia ficou no passado e o que tenho é o hoje e tenho que levantar. Ele apenas cumpre a função para a qual foi criado, e a cumpre bem, e não o posso condenar por isso.

Levanto. Jogo as pernas, o cabelo e os olhos ao frio de fora. Já o dia não está mais tão escuro. Respiro fundo, olho para a cama e para a amada (que neste instante se fundem em uma única aspiração) e lhes digo, em tom de melancolia: Vou ali na Tchecoslováquia. À noite a gente se encontra novamente.