quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Crônica de Natal



                        Era um velho como qualquer outro; eu simplesmente joguei a moeda perto do chapéu, sem nem ao menos mudar o trote. Me olhou com um agradecimento sincero no fundo dos olhos. Tinha feridas nas pernas, pelo que não andava; ficava sentado ao pé da escadaria da igreja, na busca de uma ou outra moeda, de um ou outro fiel. Era perto de uma da tarde; e lembro-me bem que, às cinco e meia, quando já voltava do meu destino, o velho me olhou e me lembrou, e disse: “Obrigado”. Percebi que me falava da moeda, e notei que era a única que angariara durante todo o dia, a despeito das missas que estavam cheias por causa do natal. Era domingo, véspera de natal.
                        Não sei por que estou contando esta história; não é uma história alegre. Mas nem todas as histórias de natal têm que ser, afinal de contas. Sei que senti uma tristeza profunda de ver que ninguém tinha se comovido com o velho pobre, apesar de muita gente ter ido comemorar o aniversário do Cristo. Senti muita pena, principalmente por ver que Deus, no dia maior do seu maior Filho, houvera reservado tal presente ao velho, que nascera para sofrer no mundo de hipócritas que este próprio Deus criara. E, ao mesmo tempo, senti também uma profunda alegria, por ter a certeza de que, de certa maneira, fui o mensageiro de um pouco mais de esperança ao velho; que, por causa do meu real, ele poderia comer alguma coisa no natal. E, ao fim das contas, agradeceria também a Deus, pela moeda que um môço lhe jogou, pela tarde. Fui para casa e me senti feliz.
                        Mas chegou o natal, e eu, que não sou lá muito de sair de casa, me vi obrigado a alguns passeios, para saudar os poucos que me queriam bem. Passei pelo velho, que estava deitado; joguei-lhe outra moeda, desta vez dentro da aba do chapéu. Olhei para o povo que, apressado para a missa, pulava as pernas estendidas do velho com certa repugna. “Hipócritas”, refleti. Lá o velho permaneceu, às portas da casa de Deus, mas sem ninguém a desejar sua presença lá dentro.
                        Os cumprimentos foram breves e logo tomei novamente o rumo de casa. Desta vez não havia o velho: havia um corpo envolto num saco preto; alguns funcionários da prefeitura por perto. Vieram retirar o corpo de um mendigo que morrera de fome durante a noite, ali mesmo. O padre logo mandou chamá-los; não ficava bem um velho morto na porta da igreja, justo no dia do natal. Olhei o chapéu do velho, ainda no chão, e não vi a minha moeda. Olhei para a igreja. Pensei no padre que jamais se preocupara com o velho, em vida; lembrei do povo que pulava o velho com nojo. Pensei em Deus, que tirara a vida do velho, vida que lhe deu sem porquê. Me peguei dizendo: “Hipócrita”; e até hoje não descobri se eu falava do padre, do povo, de Deus ou de mim.
                        Foi um natal triste; não porque o velho fosse meu amigo, nem tampouco conhecido; e pode ser até que ele tenha gastado meu real em uma dose de aguardente; não importa. Rezei ao velho, à noite, e novamente me surpreendi pensando qual a vantagem de orar a Deus pelo velho; o mesmo Deus que lhe tirava a vida. Mas acabei por crer que era, certamente, o mesmo Deus que lhe abriria as portas de Sua verdadeira casa. Nem todos os natais são alegres, como nem todas as histórias o são. A verdadeira importância, na vida, está em descobrir o sentido da vida nestas pequenas passagens, que, por si só, não são tristes nem alegres: nós é que lhes extraímos uma ou outra lição.



Tiago Bianchini Fidalgo, 26 de dezembro, 2.000.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Mandela

Morreu Mandela.
Mouro mandatário dos miseráveis.
Marco da milícia dos magros,
Dos maltrapilhos.
Dos mutilados.
Dos mortais.
Dos muitos que merecem a mudança,
Que morrem por mesquinharias
Nas mãos de malditos.
Miocárdios machucados,
Mentes em mordaças,
Máscaras de melanina.
Morreu Mandela.
Mito, Mago, mais-que-humano.
Merecedor das maiores mazelas,
E das menores máculas.
Por mostrar-nos que o mundo é mais
O mundo é macro.
O mestre é maior que a morte.
Morada das minhas 
Melhores memórias:
O Mundo é mudo.
Morreu Mandela.
Tiago Bianchini - 05.12.2013