sábado, 23 de agosto de 2014

Trova travada

Não troco nosso trato em qualquer troco;
Não trato com tristeza este trabalho.
Extraio a vida de qualquer trancalho
E espalho trovas como um bom matroco.

Das tripas, nas entranhas, transformadas
Coração; trago o extrume ao mostruário
De minhas tramóias, e antes que o cérebro dispare-o,
Distrato o trato das minhas mágoas encrustradas.

E ao trazer à tona tantos sentimentos,
Entrego-me à solidão e ao ódio atro,
E entro em transe, e através do meu teatro
Um tribal monstro vem trucidar meus tormentos.          

Destranco a trava que à porta traz-me às ruas
E através das travessas e das entradas
Em teu tributo entrego-me às transas e trepadas
Das triviais donas, travessas e seminuas

E, então,  trôpego, em meu trilhar intrépido,
Trago de volta tristezas e transtornos.
E entre um e outro trago, eu me distraio
E traço um traço triscando entre o tráfego.

Transito trôpego,  e tropeço a três-por-quatro,
Nos trapos da minha Saint-Tropez destroçada.
E, rumo à porta, atravesso a calçada
E entro em casa, e ponho fim ao meu teatro.

E minhas mãos, de forma trêmula e atroz,
Sempre me traem e trazem teu retrato.
E ao trair teus sonhos, eu, num final ato,
Retorno ao trato, torno a ti, retorno a nós.

Tiago Bianchini
22.08.14

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Die schöner Götterfunken

Fa#-Fa#Sol-La-La-Sol-Fa#-Mi-Re-Re-Mi-Fa#-Fa#, Mimi...

A beleza de Beethoven é a beleza dos parcos,
Dos que buscam sem conseguir.
Dos pobres de espírito.

Fa#-Fa#Sol-La-La-Sol-Fa#-Mi-Re-Re-Mi-Fa#-Mi, Rerré.

A alegria de poder ouvir. A alegria de não perder a clarividência sonora.
Gotterfunken.
Então vamos venerar um homem bruto, sem educação nem instrução, forçado dia-a-dia pela vida inteira a ser o melhor,
Violentado até à perfeição,
Incapaz da mais simples demonstração de afeto para os seus mais próximos entes,
Só por meia dúzia de fás sustenidos encravados em graus conjuntos?
Vamos.

Mi-Mi-Fa#-Re-Mi-Fa#SolFa#-Re-Mi- Fa#SolFa# - Mi-Re-Mi-Lá,

Só por isso? Só. Só por isso.


Livros não têm som. Livros fazem flap, flap.
Não fazem Fa#, Fa#.
Livros não mostram; apenas ensinam.
Tão-somente contam. Fa#-Fa#Sol-La-La. Alle Guten, alle Bösen.

Silêncio.
Tristes movimentos de uma orquestra de mímicos.
Um grito distante - überm Sternenzelt - 
Träumerei.
Uma voz que chama - mas não chama;
Uma boca que se abre sem dizer.
Vibrações, mais nada.
Mais nada.

Cordas que rangem inaudíveis.
Palhetas que tremem, inaudíveis.
Gargantas que ressonam.
Inaudíveis.
Notas inaudíveis.

Mi-Fa#SolFa#-Re.

E de repente dá prá sentir chegando, correndo desenfreadamente, um sentir que não se explica, um cavalgar de emoções e de surpresas. E de repente é possível ouvir até mesmo os mais inaudíveis sons, mesmo que a dádiva de escutar já nos tenha deixado há muito.
Fa#-Fa#Sol-La-La-Sol-Fa#-Mi-Re-Re-Mi-Fa#-Mi, Rerré.
E de repente está lá, a alegria, a amizade, a doçura. A capacidade de se mostrar como se é.
Nur eine Seele.
Cante, pequeno Ludwig! Fuja das dores do mundo solitário e mudo dos teus dias!
Fa#SolFa#-Mi-Re-Mi-Lá. Só por isso? E já não é pouco.
Corra, pequeno Ludwig, e quem sabe assim,
Conseguirás ouvir os acordes da tua obra-prima,
E os aplausos que te reservarão o mundo.
Ahnest du den Schöpfer, Welt?
Fuja, exilado do seu próprio corpo,
Arrancado de seus próprios gritos,
Silenciado por sua própria música.
Der Cherub steht vor Gott.
A nona, a nona… a bela centelha divina:

Die schöner Götterfunken.

Tiago Bianchini - 11 de agosto, 2014