1. Pêsames
A menina era a segunda dos nove filhos; estudiosa, ativa, estava sempre querendo participar de tudo.
Um dia, morreu alguém de uma família vizinha. Eram início dos anos 50 e a tradição dizia que cada família das redondezas devia mandar uma criança, para fazer os protocolos de praxe e apresentar a condolências. A filha mais velha foi escolhida. Que droga!
Mas a menina não se deu por vencida. Queria estar no meio, queria participar das coisas, aparecer, mostrar seu brilho. Não sabia o que tinha que fazer nem o que tinha que falar, mas entrou na fila para cumprimentar a viúva, sem que ninguém percebesse. “É só eu fazer e falar tudo igual à menina da frente.”, pensou. Todas as meninas tinham em mãos uma flor; antes de entrar na fila das meninas, também ela arrancou de algum canteiro uma flor para si.
Velórios são obviamente tristes. A função das crianças fazerem as honras junto à viúva é trazer um pouco de frescor, de paz e de brilho juvenil a uma situação já tão pesada por natureza. O sorriso e a doçura das palavras de uma criança bastam para acalmar o coração de quem teve uma perda. Certos rituais antigos do interior jamais deveriam ser esquecidos.
A menina à sua frente, vestida de branco, entregou a flor para a viúva, fez seus cumprimentos e disse:
- Meus pêsames!
Logo depois, já era a sua vez. Estendeu sua rosa vermelha à viúva, que a olhou com curiosidade: entre tantos lírios e crisântemos, quem era essa petiz que lhe trazia uma rosa vermelha? Ouviu-se um burburinho entre as pessoas mais próximas: “Ela é filha de quem?” “É filha da Pascoalina do João” “Mas a filha mais velha deles não é a Maria?” “Não sei, criança é tudo igual”
Mas esta não era uma criança igual à outras, não senhor. Ela percebeu os olhares incrédulos e o sorriso da viúva, a tentar entender o que ocorria. “Bem, já que estou aqui, agora vou até o fim. O que a menina da frente disse mesmo? Ah, sim, lembrei!”
Estufou o peito e disse para que todos ouvissem:
- Meus parabéns!
A viúva não se conteve. Caiu numa gargalhada, dessas gostosas, que nem ela própria achava que conseguiria dar na vida. Ajoelhou-se e abraçou a menina, que continuava sem entender. O velório de repente se tornou um festival de risadas e sorrisos, e o clima ficou tão leve quanto um gracejo de criança. “Obrigado, minha linda, por me fazer sorrir no dia de hoje”, foi tudo o que a viúva conseguiu dizer, entre lágrimas e sorrisos.
***
2. Ninguém está vendo
A mocinha havia acabado de chegar na cidade grande. Vinha, como muitas do interior, para tentar ganhar a vida e ajudar a trazer seus irmãos. Era a mais inteligente e estudada da família; era ativa, interessada e não tinha preguiça. Foi indicada para trabalhar num banco, por um amigo de um amigo de um amigo...
Chegou para fazer o teste. Roupas velhas e puídas, sandália de dedo. Olhou as outras candidatas com certa inveja. Havia chegado há poucos dias do interior, estava na casa de uma amiga, tinha em mãos apenas seu diploma do científico.
Mas o quê?! Não nascera para ficar presa no interior, não nascera para ser ilha: se quisesse crescer para o mundo, deveria aprender a enfrentar seus medos e seus adversários. A cidade grande jamais perdoa os covardes, lhe dissera sua amiga.
A primeira parte do teste era uma prova de conhecimentos. Fez todos os cálculos, conforme havia se preparado, resolveu todas as questões que lhes apresentaram. Na entrevista oral, atendeu seu inquisidor com doçura e educação - e mais que isso, com simpatia e humildade.
E então, chegou o último teste: fizeram-na sentar à frente de uma máquina de escrever. Olhou o monstro de aço com insegurança; tentou entender a ordem das letras, tentou descobrir a função de cada chave, botão ou alavanca, tentou disfarçar o medo. Deram-lhe um texto para copiar:
- Você tem 15 minutos.
Ela era a última das postulantes ao cargo. Já estava noite, chovia muito lá fora. As demais já haviam ido embora. Ficara sozinha com a senhorinha que lhe aplicava o teste, mas não tinha medo. A senhorinha olhava para ela, ao bater nas telas, mexer nas peças, estragando a folha enquanto tentava aprender a operar a máquina. A cada letra travada, enfiava os dedos por entre as letras e desenganchava as hastes dos tipos móveis. No fim dos 15 minutos, metade a folha apresentava rasgos, sujeira e letras esparsas, enquanto, mais para o fim da página, já era possível perceber que a mocinha estava começando a aprender o funcionamento do equipamento. Entregou a folha, envergonhada.
- Desculpe, minha senhora, nunca vi uma coisa dessas na minha vida...
A velha coçou a cabeça:
- Mas você sabe que para conseguir o emprego precisa aprender a bater à máquina, não sabe?
- Eu aprendo. Já estava começando a pegar o jeito. Me dá mais 15 minutos?
- Você não vai conseguir fazer a cópia sem erros em apenas mais quinze minutos. Isso demanda prática.
- Então me dê mais uma hora. Eu bato uma letra por vez, devagarinho, para não sujar a folha...
- Menina, já são quase dez da noite e está chovendo muito. Como você vai embora sozinha tão tarde?
- Se a senhora me der essa chance, eu irei feliz. Vim do interior, não tenho medo de chuva nem de trabalho. Já mostrei que sou inteligente e sei fazer contas, preciso muito dessa oportunidade para ajudar minha família. Por favor.
- Mas isso seria injusto com as outras meninas, que só tiveram 15 minutos para fazer.
- Elas terão outras oportunidades de emprego. Moram aqui na cidade, sabem falar sem sotaque, têm família para sustenta-las enquanto não conseguem um trabalho. E conseguirão coisas muito melhores do que eu.
Pegou outra folha, colocou na máquina e limpou as mãos, sujas de tinta misturada às lágrimas e ao suor:
- Me deixe tentar de novo. Ninguém está vendo.
***
3. Pescoço!
A mulher trabalhava no banco há vários anos. Tinha entrado como operadora, e foi subindo até gerente. Mas continuava estudando, sempre, tentando se aperfeiçoar.
O banco havia bancado um curso de economia aplicado, apenas aos funcionários de algumas agências. Da agência dela, apenas ela e uma amiga se inscreveram. Era necessário ficar até bem mais tarde para assistir às aulas, e os outros funcionários lhe diziam:
- O banco vai nos pagar hora extra para ficarmos até mais tarde nesse curso?
- Não, nem horas extras nem horas normais. Isso é fora do expediente.
- Então, sua tonta! Vai ficar aqui até mais tarde, se matando para o banco, e de graça?
- Não estou me matando para o banco. Estou estudando para mim. Eu é que quero aprender, e graças a Deus o banco me deu esse curso de graça.
Mesmo assim, o curso exigia muito de suas capacidades. Tinha muitos conceitos que lhes eram difíceis. Ela e a amiga combinaram, então, de estudar em um fim de semana.
- Vamos lá para a minha casa – disse a amiga – a gente estuda enquanto minha mãe faz alguma comida pra gente. Ela é cozinheira de mão cheia!
A amiga era praticamente uma adolescente, que tinha a mulher como um exemplo, como uma inspiração. Embora tivessem vários anos de diferença na idade, ambas se davam muito bem, gostavam das mesmas coisas, eram igualmente aplicadas.
A jovem morava muito longe. Para chegarem lá, pegaram um trem, fizeram uma baldeação, depois pegaram um ônibus e ainda tiveram que andar um bocado.
- Você faz esse caminho todos os dias para ir pro banco? – quis saber a mulher.
- Sim, mas se Deus quiser, logo logo eu consigo uma quitinete lá perto. Aí tudo vai ficar mais fácil. Não posso gastar tanto com condução assim, esse dinheiro faz falta pra gente.
Quando chegaram na casa da menina, a mulher percebeu como era a vida ali: quatro irmãos menores, dividindo uma casa minúscula. Tudo bem limpinho e arrumado, embora bem simples e sem luxo. A menina foi gritando enquanto entrava:
- Mããããe! Minha amiga veio para estudar! E depois vai ficar para o almoço!
A mãe olhou para a mulher, nas suas roupas mais finas e na moda. Pensou que a comida tinha que ser algo fora da rotina, e disse:
- Joãozinho, vai ali no açougue, me compra meio quilo de pescoço.
A mulher pôde ver a alegria nos rostos da amiga e de seus irmãos:
- Obaaaaa! Pescoçoooo! Mamãe vai fazer pescoço pra gente!
Percebeu que, para aquela família paupérrima, carne era um luxo que quase não podiam usufruir, e, quando podiam, pescoço era das poucas coisas que o dinheiro deles conseguia comprar. Percebeu que a realidade do resto do mundo não era igual à sua, de quem conseguiu subir no emprego e agora podia comer bem. Lembrou-se dos seus tempos de dificuldades, morando em garagem emprestada por amigas, fazendo bicos, andando a pé na chuva sempre que podia, para economizar o dinheiro da passagem.
De repente, em meio a um sorriso de felicidade, a amiga se virou para ela e perguntou, temerosa:
- Você gosta de pescoço?
A mulher odiava. Desde que era criança, no sítio de seus pais, não podia ver essa comida na frente. Mas engoliu o orgulho e o gosto, abriu um sorriso e respondeu:
- Mas é claro! Quem é o caipira que não gosta de pescoço?
E, durante toda a sua vida, antes ou depois daquele dia, nunca mais comeu um pescoço tão delicioso como aquele.
***
E ontem, nossa menina, nossa moça, nossa mulher, nos deixou. Sua força, sua coragem e seu brilho deixaram seu corpo finalmente descansar. Mas, apesar da tristeza e da dor dos que aqui ficam, e como ensinou a menina, a palavra certa não é “pêsames”. É “parabéns”.
Parabéns a você, que foi gerente-professora-empresária-cantineira-matriarca-mãe-solteira-ensinadora-cristã-escritora-vó. Parabéns pelos seus ensinamentos, por tudo o que nos mostrou ser possível fazer, por tudo o que fez por nós. Por respeitar, ensinar, corrigir, dar oportunidades, perdoar. A você, que sempre gostou de escrever e contar histórias, com tantos prêmios e livros escritos, parabéns pela história mais bela que pode escrever: a história da sua vida.
O último ano, com toda a sua loucura abominável, nos privou das últimas visitas, dos últimos abraços, dos últimos papos. É muito duro saber que não vou poder mais ter aquelas conversas agradáveis, aquelas viagens de carro onde aprendia tanto... A vida passa e segue, foi assim com você, será assim comigo e com todos. Todos sabem, não acredito num Ser Superior, que nos levará para um lugar maravilhoso quando morrermos, como você acreditava. Mas, se este lugar existe, tenho certeza de que acabou de receber uma de suas mais brilhantes novas moradoras. Não haverá mais abraços nem sorrisos, mas não há adeus: você vai continuar conosco, na nossa lembrança e na nossa vida – afinal, nossa passagem por aqui não tem sentido se não pudermos deixar um mundo melhor do que encontramos, e nisso, saiba, você fez a sua parte como ninguém.
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