Esta é para quem gosta de Rock
O vento brincava com as copas das árvores, ao fundo, trazendo o frio para perto da noite; até mesmo as poucas vestes rasgadas pareciam estremecer com a temperatura gélida. O mendigo, já cansado, arrastava-se procurando um esconderijo para aquelas lâminas entrecortantes que eram sopradas pelo rigoroso inverno. Havia algumas lembranças de claridade vindas das estrelas e da Lua, e, aqui ou ali, uma amarelada lâmpada acesa, abafada pelas cortinas grossas das poucas casas da vizinhança.
Ali não haveria muitas possibilidades de encontrar comida, nem mesmo abrigo. Sua maior chance, talvez única, seria encontrar alguma propriedade abandonada – haviam algumas por ali, ecos de sombras amaldiçoadas por moradores antigos – mas já estava se aproximando do bosque negro e lhe restavam poucas alternativas.
Talvez o derradeiro frio o vencesse antes mesmo que chegasse à primeira árvore.
Para aquietar seu corpo a tremer, e, talvez, para trazer-lhe uma vaga lembrança de calor e acolhimento, o mendigo tentou pensar em calcinhas com babados, correndo, a se aquecerem ante o frio. Também ele, perdedor, tem medo de correr precipitadamente para a sua morte.
Há gelo em sua barba. Ele não se sente sozinho, mas teme a companhia que, suspeita, pode estar se aproximando. “Sou apenas um velho, vagando sozinho. Nem mesmo a morte há de me querer”.
Há uma parede destruída. Ela bloqueia parte do vento que desce cortando das copas das árvores. O bosque está próximo e é morto. Tudo é morto. Não há claridade nem mesmo em seus pensamentos.
Há um quadro pendurado na parede descascada, mas o mendigo não consegue distinguir as formas do que ele retrata. A noite negra traz imagens distintas. O movimento tem cor, e o vento tem forma. A luz há muito o deixou, rumo a outras almas.
Ele consegue observar uma casa, ao fundo. Não há cheiro de vida ou calor vindo dali, mas ele precisa tentar. Ele sente o movimento de demônios antigos e já expurgados. Ele sente o mesmo frio de outrora, aquecendo sutilmente seu peito. Há um movimento; farfalhar de galhos lutando entre si. Fricção de restos de árvores mortas, tentando se aquecer após a vida.
Ele pensa em voz alta que tudo o que queria agora era uma torta com sorvete e uma xícara de chá.
Por trás dos gravetos flutuantes, há outro homem.
Ele está curvado sob o peso do seu fardo; é um velho ancião fazendo o caminho de volta. O seu eterno caminho de volta.
Há um calor oculto emanando do velho; talvez seu laborioso destino lhe tenha causado febre e suor. O ancião olha para o mendigo como um velho conhecido, e depois, ergue a cabeça por sobre a carga, a escutar o pio da coruja ao longe. Então, diz:
– Os pinheiros começaram a chorar.
O mendigo ainda não compreende, ou não deseja compreender. Ele só pensa que, de alguma forma, deve haver uma saída dali. Ele pensa alto, e o ancião lhe responde:
– Sim, é claro, sempre há mais de uma saída. Mas você deve ter certeza. Você caminhará pela noite sozinho ou a dama poderá conseguir aquilo que veio buscar.
Um calafrio lhe transpassa a alma. O mendigo arrepia-se infantilmente.
– Então há mais alguém conosco. – ele conclui.
– Oh, sim, uma mulher cruel… Que irá beber todo o seu vinho…
O mendigo estremece novamente. Ele sabe que o tempo está chegando, mas não quer admitir. Com vapor escorrendo em sua testa, ele sabe que o momento é iminente. O ancião não carrega seu próprio fardo. Ele é quem o cortou. Ele é o ceifador.
O ceifador o observa e o alerta:
– Você deve fazer sua escolha. Mas você deve ter certeza, porque, às vezes, nossos pensamentos estão equivocados.
O mendigo percebe, pelo canto dos olhos, um leve brilho azul por trás da parede semidestruída, mas ele não quer olhar. Esfrega os olhos e tenta dar dois passos atrás. Acaba esbarrando no quadro, ainda pendurado. Iluminado agora pelos azuis da escuridão, ele percebe que o mesmo velho que o observa a poucos passos também o observa do retrato antigo. Olhos que brilham, com um vermelho-fogo.
– Sim, há um aviso na parede. – o ceifador responde, mas o mendigo já não sabe discernir se fala com o retrato ou com o espectro. – Bem, eu tenho que ir, não consigo ficar parado. Já tem um tempão desde quando eu andava por aí.
O mendigo sabe que o ceifador não é uma boa companhia, mas, neste momento, sua presença ainda é melhor que a solidão. Ou, ao menos, é menos pior do que a companhia que o aguarda por trás do muro.
– Fique mais um pouco. O calor do seu corpo me aquece. Me ajude a voltar para casa.
– Corpo? – o ceifador devolve-lhe o olhar, inquisidor. Não, ele não tem corpo; o calor que sente vem das chamas infernais daqueles olhos vermelhos. “Ele é O Ceifador, não invoque-O para salvá-lo”, pensa.
Novamente, o Ceifador parece entender os seus pensamentos, e diz:
– O fogo, esta noite, não traz nenhum conforto. O Senhor das Trevas cavalga com força esta noite.
– Oh, não, eu não acredito em você. Você entendeu tudo errado… – balbucia o mendigo, agora se aproximando. Os azuis rebrilham. Se o Ceifador representa o inferno, como pode aquele brilho espectral, por trás dos muros ser ainda pior?
– Deixe-me voltar – insiste o Ceifador – Ou, então, eu vou fazer você arder e sofrer. Deixe-me voltar para onde vão os espíritos. Meu espírito chora por ir embora.
– Mas o que há atrás do próximo muro? Do que você tem tanto medo?
O Ceifador parece amedrontado. Mesmo ele não quer evocar o Mal.
– Lá anda uma senhora que todos nós conhecemos, que emite uma luz branca e quer mostrar… Não, não devo me precipitar… Já faz tanto tempo, tanto tempo!... Eu não sei, mas me disseram… uma mulher de grandes pernas, que não tem alma… Não demorou muito tempo antes de eu descobrir o que as pessoas queriam dizer. Tudo que peço quando eu rezo é que esta mulher não entre no meu caminho.
– Preciso fugir daqui. Logo irá amanhecer. Preciso encontrar um caminho.
– Ora, a noite é longa… O tempo passa lentamente… – o velho o observa, de ambos os lados. – Sim, há dois caminhos que você pode seguir. Por que você não olha para si mesmo e descreve o que você vê?
O mendigo não responde. Ele só quer ter mais uma chance. Ele só deseja que lhe perdoem os pecados que cometeu – ele gosta de confessar seus pecados sem fim.
Sem fim. Ele está perto do fim. Perto de um interminável choro de lamentação. O Ceifador sorri:
– Bem, se isso é tudo o que você consegue ver… Chorar não te ajudará. Rezar não te fará bem algum. O céu está cheio de coisas boas e ruins, que os mortais não conhecem.
O mendigo não deseja o inferno, mas teme o segundo caminho. Ele pode simplesmente virar-se e correr, mas não tem coragem de dar-lhe as costas. Ele sabe que o Ceifador já o envolveu – seu retrato, na parede descascada, ainda o observa por trás da cabeça. Ele só tem dois caminhos.
– Ainda há tempo de mudar o caminho em que você está. Boa sorte!
E, assim dizendo, o Ceifador vira-se e torna a caminhar, rumo às sombras.
Um frio o envolve como jamais o havia envolvido. Seu nariz parece um pingente de gelo. Ele sabe que não pode ficar ali. Agora, na escuridão, aparece a luz, bruxuleante e pálida, que o atrai como a uma mariposa. Ele dá um passo. A luz, ainda mais macabra, o convida. Ele dá outro passo – indo ao encontro de um destino inexorável.
E, então, ele a vê.
Ela está encostada, em um muro baixo, em frente à Mansão dos Mortos. Seus cabelos soltos e negros sobre o rosto pálido, a sorrir-lhe como Monalisa – brilha no seu rosto um sorriso mortal.
“O que é isto, que está diante de mim?”, ele se pergunta. A mulher ainda não diz nada; seu fraco brilho azulado parece dizer por ela. O Ceifador, agora, parecia ser uma dádiva, um velho amigo.
O vulto preto aponta para ele. Uma grande figura negra, com olhos de fogo. Ele descobre que é o escolhido. A garota, com os dedos amarelos de cigarro, está olhando para ele.
O mendigo começa a chorar. Jamais havia chorado em toda a sua vida. Por trás das montanhas, e além, entre círculos de fumaça por entre as árvores, um sino toca. Sua cabeça está zumbindo e isso não para… “Ah, não, não, por favor, Deus!... Oh Jesus, salve-me!”, ele ora, em silêncio, para todos os deuses que conhece.
– Nós somos os nossos próprios salvadores – ela diz, finalmente. Ele percebe que ela conhece seus pensamentos, e ela confirma:
– Sim…Em meus pensamentos, eu já vi… Seu medo é real. Ele está dentro de você e de mim, para sempre comigo, até o fim dos tempos.
Ela sorri novamente. Ambos sabem que o destino já está traçado, mas, na cabeça do mendigo, ainda ecoam as palavras do Ceifeiro: “Há dois caminhos que você pode seguir, mas, no longo prazo, ainda há tempo de mudar o caminho em que você está”. Mas ele não sabe como. Tenta, então, uma última pergunta:
– Quem é você, afinal?
– Olhe em meus olhos, e você verá quem eu sou.
Ele não quer olhar. Não quer encarar. Ela é a pesada realidade. Pétalas mortais com estranho poder – o poder do mal. Do mais tenebroso de todos eles. Ele vê o olhar do mal em seus olhos, e busca, desesperadamente, alguém que lhe conduza à razão.
– Leve seu corpo a um cadáver, ressucitando-o da sepultura. Não há mais volta.
Suas palavras confundem-se com as do Ceifador; ela mantém o sorriso plácido e não se move. Ele sabe que já não há dois caminhos, e o inferno, agora, seria uma bênção. Os azuis eternos o golpeiam, iluminando a face tão fria... Será esse o fim?
– Siga-me agora, e não se arrependerá. Lado a lado, nós seremos poderosos. – torna a mulher, sem espírito e imortal. – Nós somos os nossos próprios salvadores.
É uma frase que já ecoou em seu peito, como um deja vù. Ele tenta se lembrar, novamente, dos belos dias, sentado no banco, olhando calcinhas com babados correrem, secando sob o Sol frio. Ele tenta se recordar de quando ainda tinha uma alma, a observar pela grade enquanto as meninas brincavam. Ele simplesmente pondera… será que aquela dama tratará seu velho como deveria?
Frases se misturam na sua cabeça febril. A mulher aguarda e sorri. Ela sabe que ele já traçou o seu destino. O seu desespero a alimenta. A Mansão dos Mortos, imponente, o convida a entrar. O frio já é insuportável. Sua perna dói. Seu coração já não bombeia vida. A mulher má aguarda o momento de trancá-lo em sua gaiola dourada; a escuridão dormindo sobre sua cama de ardósia.
O mendigo, finalmente, se resigna:
– Antes de encerrar, eu gostaria de fazer as minhas preces…
Mas não há tempo. O sorriso da Monalisa se fecha. Os olhos de fogo se abrem ainda mais. Ele ouve as vozes daqueles que observam, e eles sussurram que, em breve, Nossas sombras serão maiores do que nossa alma. Ele fecha seus olhos, tentando buscar um último sopro de ar, tentando encontrar uma mulher que nunca, nunca, nunca nasceu.
– Acho que não poderei resistir por muito tempo, e o tempo tudo nos dirá para aqueles que não desistirem – ele sussurra, já sem tentar resistir, nas profundezas da vida.
Há três álbuns de rock clássicos nessa história. O mendigo veio de "Aqualung" da banda Jethro Tull. O homem do feno, ou o Ceifador, está na capa de "Led Zeppelin IV" e a mulher fantasmagórica aparece em "Black Sabbath". A maioria das frases ditas pelos personagens são adaptadas das letras das músicas destes três discos.
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