segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

A História Improvável

            Toda história deveria, ao meu ver, ter um calabouço. Não apenas pela mística que o próprio nome emprega, esse algum lugar desconhecido, como pela busca pela fuga, a ânsia de liberdade, a iminência da ação. Mas por um destes mistérios inexplicáveis da literatura universal, convencionou-se que os calabouços ficariam reservados para as histórias medievais, juntamente com masmorras, princesas e afins. Uma infâmia. A grande maioria dos castelos medievais, com todas as suas torres, masmorras, pontes elevadiças e – é claro – calabouços, continuam de pé até hoje, intactos. Logo, qualquer história de calabouço seria possível atualmente. Além do mais, segundo a ONU há hoje quarenta e sete monarquias no mundo, portanto não é difícil encontrar uma princesa viva para as minhas histórias. Imagine que um playboy de Hollywood atravessa a ponte elevadiça com seu Jaguar branco e...
            Mas regra é regra; vamos confinar os calabouços à Idade Média, que também ninguém está aqui para jogar setecentos anos de história e tradição literária na lata do lixo. Deixa-me ver... A minha história deve-se passar num ano bem longínquo... Pode ser mais ou menos assim: “Há muitos e muitos anos...” Não: aí também já é avacalhar. Vamos pensar em outra coisa... “Há poucos anos atrás...” Hum, não; não vamos mentir. Está bem, deixemos da seguinte maneira: “Há um tempinho atrás, que não foi logo após o big-bang mas também não foi agora a pouco (é, assim tá bom), havia uma República de Estudantes de faculdade onde só moravam homens e meninas feias. Mais feias que bater na mãe (acho melhor tirar esta piadinha horrível). Foi quando chegou uma menina para ficar por ali e estudar Teoria Quântica (já estou vendo que eu vou acabar me comprometendo com este assunto...). Como ela era realmente muito bonita, todos os rapazes a cumprimentavam: “Bom dia, princesa”, “quer sair comigo, princesa?”...
            Já deu pra perceber que a minha história vai ficar horrível. Ainda mais porque não existem calabouços em Faculdades (pelo menos não que eu saiba). Embora às vezes deveria existir. (Finge que você não leu isto, está bem?) Acho melhor eu começar de novo, e rápido, que até aqui já foi mais de meia página:

                        “O sol já vinha alto em Miralodo, a cerca de oitenta milhas do Velho Oeste. Lugarzinho tão monótono que a distração era a chuva. O xerife Kid Vinyl lia o seu jornal diário, que semanalmente lhe traziam da capital da província, com notícias do mês passado. Estava na barbearia, e o barbeiro lhe cortava o cabelo. Miralodo; terra onde até mesmo quem corta o cabelo é valente. Aquilo é que era barbeiro macho: os dentes do seu pente mordiam os cabelos dos fregueses.
            Foi quando ela entrou. Viera correndo e o cansaço fazia seus seios ofegantes saltitarem ao vento. Tinha os cabelos negros atados por uma trança; o suor banhava-lhe o vestido e o lenço na fronte não escondia seu semblante. Sua beleza falava por si. Só que ninguém escutava. A feiúra, afinal, é mais durável que a beleza.
            - Xerife! Xerife! O bando de Touro Sentado está invadindo a cidade!
            - Acalme-se, mocinha – introduziu o xerife – Quem disse isto à senhorita?
            -Encontrei esta carta anônima embaixo do capacho da porta de casa, quando fui pegar o saquinho de leite que o entregador jogou.
            Kid Vinyl leu atentamente:
            “Xerife: Touro Sentado invadirá Miralodo às três horas. O bando deles assaltou a nossa caravana. Tinham um aspecto tão violento que até os nossos cavalos levantaram as patas! Mandou que lhe enviasse esta carta. Ordene que todos fujam de Miralodo! Touro Sentado te aguardará no Sallon”
            - Pois Touro Sentado que não se atreva a vir aqui para Miralodo! – bradou Kid – Eu defenderei esta cidade com unhas e dentes!
            Lugarzinho de macho. Kid Vinyl levantou-se, pegou algo no bolso, jogou para o barbeiro – guarde o troco, Sam! – e saiu. Sam agradeceu e olhou. Era uma tampinha de garrafa. Foi até a delegacia chamar seu ajudante. A mocinha foi atrás.
            Entrou na cadeia. Puxou o cinto para cima e olhou em volta. Um rapaz estava sentado, manuseando manuscritos.
            - Ei, Psiu.
            O rapaz olhou. Era tão insignificante que seu nome era Psiu. Estava escrevendo um romance. Começara a carreira escrevendo contos. Contou um conto, não acrescentou um ponto e virou romance. Estava terminando os últimos capítulos. O livro tinha princípio, meio e fim. Não nessa ordem. Era profundo como um poço, mas vazio. Psiu era um autor tão ruim que receberia errados autorais.
            - Levante-se, Psiu. Temos trabalho a fazer! – continuou Kid. – Vamos até o sallon prender Touro Sentado!
            - To-Touro Senta-ta-tado?! – Psiu chocava violentamente um joelho contra o outro – E como o Senhor sabe que ele está no sallon?
            Kid Vinyl olhou em volta, cuspiu no chão e disse:
            - Recebi uma carta anônima.
            - Oh, não! – exclamou Psiu – Mandar carta anônima é um ato... Inominável!
            - Depressa, Psiu: não temos tempo a perder.
            Foram os três para o sallon. Kid Vinyl puxou para cima o cinturão, e depois olhou em volta. Havia dois ébrios brigando num canto do sallon, e quando viram a autoridade ficaram quietos. Um surdo-mudo que vivia ali pedia esmola. Um ventríloquo fazia seu espetáculo no palco. Ventríloquo muito bom. Ótimo. Agradava até com boneco mudo. Um dançarino gay ensaiava um número com seu cachorro. Era o único gay da cidade. Cidade de macho. Mas aquele valia por todos os gays que faltavam. Era tão gay que pediu para trocar o chuveiro porque o seu estava todo furadinho. O cachorro trazia uma placa no pescoço: “cão feroz”, mas, de que adiantava a placa se o cachorro não sabia ler?
            Entrou no sallon à procura de um ladrão e encontrou: o barmann cobrava vinte dólares por uma dose de uísque. Era um ex-vaqueiro, que acabou perdendo todo o seu dinheiro na Bolsa. Na bolsa da mulher. A maior humilhação daquele vaqueiro é que sua mulher usava as esporas dele para cortar massa de pastel. Lavou o copo e serviu o xerife. Os encanamentos do sallon estavam tão sujos que antes de lavar o copo foi preciso lavar a água.
            Do outro lado do bar estava Touro Sentado. Foi quando o relógio soou:
            - Hora Tertia! Hora Tertia! (como os algarismos eram romanos, o cuco do relógio dava as horas em latim).
            Touro Sentado se levantou. Toda vez que Touro Sentado se levantava, mudava de nome.
            - Então, você veio, Touro Em Pé – disse Kid.
            - Aqui estou, Kid. Chegou bem na hora.
          - É o que eu sempre digo – tornou Kid – Nunca deixe para amanhã o que você já deixou de fazer ontem.
            - Pois vamos até lá fora que antes de saquear a cidade eu preciso matar você.
            - Não me importo com seus insultos, Touro Em Pé! – bradou Kid.
            Foi quando ouviu-se o surdo-mudo gritar:
            - Insulto no Velho Oeste é chamar cow-boy de bull-dog!
            Foi, realmente, muita falta de tato do surdo-mudo. Depois descobriu-se que tinha sido o ventríloquo que tinha posto palavras na boca do surdo-mudo, só de sacanagem.
            Saíram. O sol já vinha caindo em Miralodo.
            - Belo dia para morrer, não? - Disse Touro Em Pé.
            Era um hipócrita, mas com muita sinceridade. Afinal, a maior das mentiras é dizer que a verdade mora no fundo de um poço.
            - Vou matar você, xerife, e depois vamos atacar esta cidade!
         - Vocês não são de nada, Touro Em Pé! Os índios sempre atacam muito, mas dificilmente fazem algum gol!
            Kid era, apesar de tudo, um homem bom. A não ser para proteger a sua cidade, ele seria incapaz de fazer mal a um dobermann.
            Puxou o cinturão para cima, olhou para os lados e cuspiu no chão. Ninguém sacava tão ligeiro quanto Kid Vinyl. Já chegava no banco com o cheque assinado. Era, de fato o pistoleiro mais rápido do Oeste. Quando saía correndo ninguém o alcançava. O duelo entre Kid e Touro Em Pé era uma luta desigual. É claro que toda a luta é desigual, ou não acabaria nunca.
            Touro Em Pé puxou o gatilho primeiro, mas não atingiu Kid Vinyl. Não havia quem matasse aquele xerife: sua estrela era de aço blindado e tinha dois metros de diâmetro. Kid Vinyl alvejou seu algoz com dois cartuchos.
             Touro Em Pé caiu no chão agonizando.
            - Que isto lhe sirva de lição, Touro Deitado-estrebuchando! A vida de um bandido é sempre muito curta.
            - Não é que a vida seja curta. O tempo é que passa rápido – disse Touro Deitado-e-Morrendo. E Morreu.
            O enterro do mau-caráter foi muito concorrido. Todos queriam ver se ele tinha morrido mesmo. O bando de Touro sentado bateu em retirada (expressão incorreta, já que quem bate em retirada, na verdade, é quem apanha). Kid Vinyl então pediu a mocinha em casamento. Dizem que a beleza é relativa, mas nela a relatividade ultrapassava Einstein. Kid Vinyl nem ligava. Era um homem muito distraído. Tão distraído que contratou um detetive para saber onde ele próprio andava. Estava apaixonado pela mocinha que, pode-se dizer, tinha belos pulmões. Kid Vinyl só não conseguiu ficar famoso porque matou o penúltimo dos moicanos.
            Quando estavam quase indo embora, eis que, de trás do túmulo de Touro Deitado-para-Sempre, abre-se um alçapão e sai de dentro de um calabouço um Playboy de Hollywood num Jaguar branco, tira a mocinha dos braços de Kid Vinyl e os dois vão viver felizes para sempre na cidade-cenário de Gothem City.”

*Créditos nos comentários.

Sonet


                        Não vou:
                        Irei;
                        Mas sei
                        Quem sou,

                                   E se,
                                   Assim,
                                   Você,
                                   Por mim,

                        Brigar,
                        Lutar,
                        Vencer;

                                   Então
                                   Só teu
                                   Serei.

Ti Bi - 1999

Definição


Deusa, santa, cálida sereia;
Musa inspiradora das ralés;
 Bela brisa, que envolve e premeia;
Dádiva és.

Divina aura, Magna Soberana,
A deixar que te idolatrem aos teus pés;
Calma onda, que leva e traz a chalana;
Ternura és.

Senhora dos corações do Universo;
Doce Yara, a nortear as marés;
Imperatriz das canções, prosa, trova e verso;
Sublime és.

És, por definição, indecifrável:
És incontável como estrelas a piscar no azul:
És a súbita alegria de um amor incontrolável:
És tu.

Tiago Bianchini - 2002

O Que Há II


Não há ninguém aqui.
                Este é um aglomerado de carne vermelha e ossos, e alguns já em decomposição; uma pequena porção de natureza-morta a se mover na sombra.

Não há ninguém, já disse.
                Sessenta e oito quilos de restos orgânicos, à espera dos vermes; isto que vês não é nada, apenas um albergue de sentimentos menos nobres – inveja, cobiça, derrotismo, idealismo – que não tiveram pousada nos corpos mais evoluídos.

Não há ninguém.
                E, talvez, “ninguém” ainda seja muito; talvez as teias de aranha abandonadas escondam a imundície onde um dia viveu uma alma, e quem sabe, até, por uma noite ou outra, pernoitou o amor.
               
Não, não há mais ninguém.
                Sou um resto embolorado e fétido de indivíduo; a casca que a beleza não quis para si. Vês não mais que um refúgio abandonado de sensações medíocres, de destinos inúteis.

Eis-me, o bagaço das coisas torpes, o ridículo esconderijo da infâmia; Eis a mim, mancha da Criação Humana, que insiste em incomodar apesar dos olhares, a causa indireta dos malefícios do Mundo – e sabedor disso. Eis-me: tudo o que Deus repudiou na Natureza.

Tiago Bianchini - 2000

Despedida


Não quero mais te ver porque não te mereço;
Antes fosses tu uma vadia.
Quiçá, assim, não lhe guardaria o menor apreço
E talvez, nem mesmo conhecer-te-ia;
Não era necessário nossas vidas cruzarem-se assim
- Me és um mal, uma sífilis, uma enfermidade
Justamente porque és boa; e há algo em mim
Que – isto eu sei – te amará por toda a eternidade.

Não quero mais te ver porque já te vi demais,
Eis o meu mais ignominioso pecado:
E esta purificação não me virá jamais.
Havia tantas que eu poderia ter amado!...
E tantas bocas que poderiam ser minhas
E eu poderia ter sido de muitas, e sido feliz –
Mas, não: ao invés de me entregar às paixões tolas e mesquinhas,
Deus me entregou às sombras, me entregou a ti, assim o quis.

Vai embora. Desaparece daqui, Some.
Não volte mais; me deixe como quem se desfaz,
Na porta alheia, de um cão mendigo e sem nome.
Tal é como deve ser; e até me apraz
Que o faças com sangue-frio e crueldade
Pois o ódio sufocará o amor – eis minha salvação:
Melhor um ódio que se nutre da verdade
Do que um amor que se mortifica na ilusão.

Tiago Bianchini - 2005

O que há num Sorriso

Sim, sofro! Mas e daí?
Todas as vidas são um mar de rosas?
Não! Todos sofrem... Dores monstruosas...
Sim, eu sofro: deixe-me aqui.

Verdade é que, por versos e prosas,
Se camufla a dor a se sentir;
Mas, não obstante, sofro: e no meu sorrir,
Perceberás tu minhas mágoas copiosas.

Não há sorrisos sinceros, nesta Terra:
Há a tortura dos dentes que, forçados
A se mostrar, o fazem amarelados;

Há, na vida, a mágoa que se enterra
No nosso peito, e incomoda, e espera
Pelo derradeiro instante de nos calar os brados.

Tiago Bianchini - 2002

O Duro poema da Realidade


Não te amarei pela vida inteira;
Isso é apenas algo para enfeitar
Um poema; nada dura desta maneira,
Tampouco um amor haveria de durar.

Todo poema é, por excelência, exagerado:
“Te darei tudo, as estrelas, o céu, o mar...”
Esta não é a vida real; está errado
Prometermos coisas que nos é impossível dar.

Não; não serás a única; tampouco a derradeira;
Haverei de amar muitas, e tantas...
E a cada uma direi ser a mais faceira,
E as adorarei como se adora às santas.

Entretanto, ainda é por ti que meu coração palpita,
É a ti que amo, ainda, e mesmo assim
Ainda são teus poemas de quem acredita
Que terá teus carinhos por perto, junto a mim...

Por isso, ainda te adoro intensamente
De um amor febril, eterno e louco;
E continuarei te amando eternamente
‘Inda que este eternamente dure só um pouco.

Tiago Bianchini - 2002

Sofrer

Qual o sentido da vida? Sofrer!...
Consumir-se aos poucos, de solidão,
Deixar-se ferir, desejar morrer,
Sofrer, mais nada; é esta a razão.

A vida é inimiga do coração;
De tudo faz para não se ter
O menor motivo para, de paixão,
Viver.

Por que, afinal, viver? Um sonho em vão
Que se insiste em sonhar, e, sem querer,
Por sorte ser feliz, mas, não...

Eis a razão da vida: ser
Apaixonado e sofrer, e - por que não -
Ver nisso o melhor motivo para viver.

Tiago Bianchini - 2002

Amores:


Amores não acabam: vivem em nós
Para todo o Sempre, nos fazem companhia;
Amores não acabam: apenas nos deixam sós
Quando se cansam da nossa rebeldia.

Não, não se mata um amor, e mais:
Nem se morre dele; vive-se somente;
Não existem, na vida, amores fatais:
Existem amores, amores simplesmente.

Amores não acabam; amores simplesmente
Esperam a hora exata de ressurgir,
Tal Fênix das cinzas, dentro da gente,
E novamente arder e nos fazer sorrir;

Não há fim no amor; não;
Amores jamais virarão pó...
Amores são eternos; amores são
Amores simplesmente; amores e só.

E o meu amor por ti, este eu te digo
Que não haverá nem dor nem saudade
Que o afaste de mim: estarás comigo
Em cada passo meu rumo à eternidade. 

Tiago Bianchini - 2001

Reencontro


Éramos jovens; tão cheios de vida...
O futuro era nosso; éramos dois
Apaixonados amantes, sem depois,
Sem sofrimentos, nem dor, nem despedida;

Éramos tolos - eis o nosso erro; pois
Os dias passam; e tu, querida,
Misturaste-te às mágoas, e vós, unidas,
Já somam tantas que nem sei dizer quantas sois.

Éramos pássaros que voavam à toa
Juntos; e hoje, que somos? Apenas
Dois desconhecidos, sob a mesma garoa...

Dois atores, de luto, em diferentes cenas;
Separados por uma distância, que, por mais que doa,
Não é jamais morta por paixões pequenas.

Tiago Bianchini - 2000

Amor (s.m.) - palavra não encontrada


Amor: tolice de um apaixonado
Que, antes de sofrer, reza e proclama
Maravilhas deste Mundo Encantado,
Encantando a doce vida de quem ama.

Amor: verso ilustre da poesia
De quem, um dia, sonhou em ter somente
Uma paixão, carinhosa de alegria,
Na emoção e comoção d’um beijo ardente.

Amor: magia acabada da saudade,
Pétala seca d’uma rosa perfumada,
Em cuja dor não se esquece fácil assim;

Amor, pois, contraface da verdade,
Sentimento desta vida amargurada,
Amor, pois, tudo na vida, enfim.

Tiago Bianchini - 1999