Nunca tinha visto o mar
Olhava para as imagens, impressas em preto-e-branco
De fotos maravilhosas que saíam nas reportagens
Dos cadernos de cultura que encartavam os jornais.
Papai dizia-me, com aquele sorriso franco,
Que já vira o mar, em suas viagens,
Que era lindo, e não o esquecera jamais.
E lá ficava eu, menino da roça,
Sonhando com aquele lago que não tinha fim:
Imaginando-o, verde, azul, de cor nenhuma;
Desejando vê-lo, pedindo sempre à Nossa
Senhora, mãe de Deus, que desse a mim
A chance de conhece-lo, de brincar em sua bruma.
E diziam que sua água era salgada,
Como a temperar os peixes que nele moravam;
E diziam que ele era tão fundo, mas tão fundo,
Que no fim da água não havia lodo nem nada,
E os navios displicentes que afundavam,
Afundavam, afundavam, até o outro lado do mundo.
Ah! O mar! Meu Deus, como eu queria
Poder olhar para ele, num dia de sol quente,
Com sunga e boia, e balde de areia!
E ficar ali, brincando, todo o dia,
E fazer castelos, e correr, e ver gente
E ter a alma, de felicidade, cheia!...
Papai me dizia que não tínhamos dinheiro:
“Mas, um dia, meu filho, você vai crescer
E vai enricar, e vai ser muito feliz,
E vai poder viajar o mundo inteiro,
E até o mar e a neve vai conhecer,
E vai viver e ser dono do seu nariz!”
Mas eu não queria esperar crescer, eu só pensava
Em ver o mar, em poder sentir o vento
Das tais “brisas marinhas”, no meu cabelo;
E papai, que sempre dizia que não dava,
Ao ouvir meu pedido e meu lamento,
E sofria por não poder atendê-lo.
Era a vida, não se pode ter tudo.
O Mundo gira, a Terra é redonda,
E flutua, solta, no Universo,
Tal qual o peixe no mar, e eu, miúdo,
Podia apenas imaginar como era a onda
Tão bem cantada por poetas, em prosiverso.
E assim ficava, em meus sonhos absorto,
Até que um dia, papai chegou com o riso aberto:
“Tenho uma carga importante pra levar
Lá pra São Paulo, e vou deixa-la no porto;
Façam as malas, fiquem prontos: se der certo,
Nós vamos todos lá pra praia, ver o mar!”
Naquela noite, não dormi, tamanha era
A excitação: íamos viajar, eu e meus pais
Na boleia do caminhão, de madrugada;
Finalmente, teria fim a minha espera:
Eu chegaria pela manhã à beira do cais.
Meu sonho estava ali, ao fim da estrada.
E, então, Deus, eu seria feliz por completo!...
Mas, na escuridão da rodovia, uma luz
Na direção contrária, veio nos pegar de frente:
Senti meu corpo ser jogado contra o teto,
O caminhão tombar, mamãe chamando por Jesus
E, num estrondo, tudo sumir de repente.
Acordei, um pouco tonto, em uma cama
de hospital, com talas e soro, entre lençóis.
Tudo doía, de uma dor que não se esvai.
E ao olhar em volta, e, depois, para a mamma,
Eu percebi, com dor e medo, que entre nós,
Faltava uma pessoa, e perguntei: “Cadê papai?”
Mamãe, então, contou-me o ocorrido…
Havia outro caminhão em sentido contrário
E papai fez uma manobra decidida:
E conseguira mudar o que certamente teria sido
A morte de nós três; e, solitário,
Apenas ele despediu-se desta vida.
Fiquei mudo, aturdido; tentei ser forte,
Tentei conter a dor no meu peito de menino
E entender como é possível tão cruel
Desfecho; papai abraçou a morte
Para nos salvar, e aceitou o seu destino
E foi mergulhar nos mares lá do Céu…
E dos meus olhos senti brotar tanta água,
Água salgada, a inundar meu peito ferido…
E fazer ondas de tristeza em meu olhar,
E, sem poder controlar meu choro e mágoa,
Sentindo a vida submersa, pensei comigo
Que era a primeira vez, enfim, que via o mar…