quinta-feira, 19 de junho de 2025

Amar


(por incrível que pareça, em mais de 30 anos de poemas, acho que nunca escrevi um poema com esse título...)


Amar é bom

o tempo todo.


Mesmo que não seja real.

Mesmo que não esteja perto

o tempo todo.


Amar é bom

o tempo todo.


Ainda que não se possa

Ainda que não se sinta

Merecedor ou capaz.


Amar é bom

o tempo todo.


E quero sentir a cada momento

E quero ser teu mesmo não sendo,

E quero descobrir como é bom


Amar você

o tempo todo.

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Carta Não Enviada

Então, é isso: te amo. Isso diz tudo.

E isso me faz livre, e me faz leve.

Agora meus sonhos serão, tarde ou breve,

feitos ou desfeitos. O Amor me é escudo.


É isso. Te amo. E isso me faz feliz.

E não me importa que não me vejas nem

Que me desprezes ou me trate qual um ninguém:

O Amor é meu. Sou eu. A mim condiz.


E te amo de um jeito quase mesquinho:

De um amor impossível e mal alimentado,

De um deixar crescer solto e não cuidado,

Como uma erva daninha selvagem pelo caminho.


Eu te amo mesmo sabendo que não devo

Te atrapalhar na sua vida bela e plena;

Para te proteger desse Amor, transformo-o num poema

E, para que ele transborde em mim, o escrevo.


E gosto desse amor, e de te amar,

E sinto a vida correr nas veias, qual

Suas risadas, seu sorriso matinal,

Que em devaneios motivam meu despertar.


O Amor é meu. Minha culpa. O meu fardo.

O guardarei para mim, e estarei contigo:

Nas brincadeiras e nos risos, seu amigo,

E, nos sonhos e no imaginário, seu bardo.


Meu amor será um rio em que teu quente 

corpo de vida real não se banha, mas podes ouvir,

Ao longe, suas águas murmurarem a fluir

No curso d'água que te umedece e refresca a mente...


E, sim, sou responsável pelo o que sinto:

Como uma papoula, cultivada em meu jardim,

Que entorpece e envenena somente a mim

Que me embriaga como o mais puro absinto.


E fazer-te sabedora desse amor não te faz presa;

Não é pra te fazer sofrer, a esmo:

É pra me fazer sincero comigo mesmo,

E assumir meu peso, e te dar leveza.


Mas meu amor... Ah, meu Amor!... Não vou matá-lo;

Vou cuidar dele e admirar seu crescimento 

Quem sabe, em breve, ele tenha seu momento

De se tornar o teu senhor ou teu vassalo...


E, assim, mesmo que eu jamais viva, então,

A alegria de ter você envolta em mim,

serei feliz, te vendo bem, porque, enfim,

Sei que não posso bagunçar seu coração.

domingo, 2 de março de 2025

Badinerie

As mãos estavam sobre as chaves e orifícios da flauta. A partitura, aberta à sua frente. Mas, em vez da alegria invadir a sala, restou o silêncio. Tentou soprar uma ou outra nota. Não, não eram essas. Jamais voltariam à sua mente.

 – Você precisa tentar, Amor. Toque aquela que eu gosto! – a amada insistia. Mas o flautista já não conseguia recordar. “Como é que se sopra essa porcaria?” Deve-se usar o “i” dos franceses, ele se lembrava, diga “o” com som de “i”, empurre o ar em ângulo, nada de ficar soprando como se fossem velinhas de aniversário. Assim lhe disseram na juventude. Mas agora já era velho, e, desde o derrame, não acertava mais essa embocadura. 

 – Sou um flautista senil e imprestável – disse, por fim, jogando a flauta sobre o sofá. – Aquela música, aquela música... Qual música era mesmo?

 – Ora, Amor!... Aquela assim – e sua amada assobiava como um colibri, enquanto dançava um Allegro com um par imaginário. – Espera!...

 Correu até a estante e achou a partitura.

 “Bach, J.S. - Badinerie”, ele lia no alto da página. Conseguia compreender todos os símbolos e anotações da partitura, conseguia ler como um nativo aqueles caracteres e barras, mas não conseguia fazer com que os dedos o seguissem.

 A amada murchou aos poucos. Tomando as mãos dele às suas, disse, condescendente:

 – O doutor disse que era importante, Amor. Ajuda com o Alzheimer. Ajuda com a coordenação motora pós-derrame. Vamos tentar de novo. – E, alcançando o instrumento no sofá, o devolveu ao dono.

 Novas notas perdidas ecoaram pela sala. Definitivamente, seus dias de música se foram. A amada, então, deu de ombros:

 – Se não quiser mais tentar... Que pena! Gosto tanto dessa música!

 Foram suas últimas palavras antes de tombar para trás, de olhos virados, e se desconjuntar sobre o tapete, entre a poltrona e a mesinha.

 Ele sorriu; achou que era uma inesperada brincadeira – “Badinerie”. Depois, o sorriso fugiu, tal qual a música, dos seus lábios rugosos. Enquanto o fino tubo metálico caía de suas mãos e rolava até se esconder sob a estante, correu a acudi-la. Era uma mulher já passada em anos, como ele. Não se lembrava muito bem dela, nem do seu nome, nem de onde a conhecera, nem de como estavam ali, a sós, como um casal. Talvez ela fosse alguém tão desconhecida quanto a canção que tentara entoar; sabia que deveria se lembrar de ambas, que ambas eram importantes, mas sua memória fugidia não lhe trazia mais as informações necessárias. “Badinerie” foi a palavra que lhe veio à mente. Sim, a senhora era Badinerie, e ele, Alzheimer.

 Naquele momento, no entanto, ela permanecia caída no chão, com ar moribundo e rosto pálido, e ele não sabia como ajudar. Abriu a porta de casa e gritou por ajuda. “Esta senhora desmaiou de repente, preciso saber se alguém pode...”, ele dizia para os dois ou três vizinhos de andar que, seja por altruísmo ou por curiosidade, ousaram abrir as portas.

 Ele ouvia coisas como “Meu Deus, ela teve um derrame!” e pensava: “Sim, sim, derrame, foi isso, ela me disse”. As ações alheias atropelavam sua tentativa de compreensão dos acontecimentos.

 – Vovô, sua esposa está mal. Precisamos correr para o hospital.

 – Sim, claro, mas me deixe pegar a minha blusa.

 Entrou na sala novamente. Olhou para o chão e achou que estava faltando algo ali, no tapete, entre a poltrona e a mesinha. “O que eu vim buscar, mesmo?”, pensou, antes de reparar na flauta sob a estante. “Oh, sim, é isso.”

 No caminho, enquanto os médicos procuravam reanimar a amada, ele tentava nova embocadura: 

 – Não lembro mais de como se faz isso, mas eu sei que conseguia, antigamente era ótimo flautista! – explicou para a enfermeira que, com olhar triste, lhe permitiu que continuasse tentando.

 Chegaram ao Hospital. A amada foi retirada em uma maca e levada para dentro, às pressas. Tubos e bolsas de soro foram espetados na sua pele fina e delicada. Ela não abria mais os olhos, aqueles olhos acinzentados que o flautista venerava quando jovem, sem que, agora, se lembrasse disso.

– Qual o nome da paciente?

 – Não sei dizer, doutor... – ele estava desorientado e amedrontado.

 – E o seu nome, o senhor sabe?

 – Acho que... não, não sei. Sei que estávamos conversando. Ela está aqui? Gostaria de retomar a nossa conversa, eu me preparava para tocar uma sonata para ela, sabe...

 – Doutor – outra voz se intrometeu na conversa. – Eu sou vizinho do casal, posso te dar as informações que precisa.

 Deixaram-no sozinho. Ele olhava para a flauta. “Pobrezinha”, pensou. “Se ela não tivesse tido esse mal-estar, talvez tivéssemos conversado mais, teríamos começado uma boa amizade, talvez até algo mais...” Ele olhava para os orifícios e para as chaves brilhantes e niqueladas, e não conseguia identificar onde estava o Ré nem o Si bemol. “E, mesmo que eu soubesse, a partitura não está aqui comigo, eu a esqueci em casa”. Decidiu que esse era o problema. Olhou para a menina do balcão e disse, com um sorriso de desculpas:

 – Imagine só, onde anda a minha cabeça! Esqueci a partitura em casa! Como posso tocar alguma coisa desse jeito? Ah, eu ando meio avoado, me perdoe!

 – Não se preocupe, senhor. O senhor pode tocar de memória... – a sugestão da jovem pareceu fazer sentido, mas o flautista não conseguia, de memória, posicionar os lábios pela fenda principal.

 – Senhor, sua esposa está muito mal. – interrompeu o médico, com gentileza. – Iniciamos o coma, mas acho que o senhor poderia ficar junto a ela... O senhor sabe, é hora de se despedir...

 E, agora, ele está ali, sentado em uma cadeirinha desconfortável, ao lado daquela mulher que repousa, cheia de tubos e bolsas de soro. Ela não parece sentir dor; lhe disseram que ela não sentirá mais nada e que não pode mais reagir. O aparelho ao seu lado apita insistentemente – monofônico, ritmado, inexorável.

 Ele sorri e se recorda:

 – Um metrônomo! Era isso mesmo que estava faltando.

 Empunha novamente o instrumento, e, dessa vez, o resultado é igual a todos os anteriores: um barulho de pneu vazando, nada mais. Ele sabe que aquela senhorinha merece, pelo menos, descansar ao som de uma música.

 Ele olha atentamente para o rosto da mulher, deitada à sua frente. “Olá, eu me chamo Alzheimer, e você deve ser a Badinerie. Bonito nome, senhorita. O que você faz aqui? Derrame? Ah, eu também! Não é uma agradável coincidência?...”

 Alzheimer. Derrame. De repente, tudo faz sentido.

 Seu sorriso se esvai com a percepção aterrorizante do que está acontecendo. “Como pude ficar alheio a tudo isso?”, ele se pergunta. Olha novamente para a mulher. É ela, é sua amada, é a mulher da sua vida. Não há mais esperanças!... 

 Ele se recorda, de chofre, da primeira vez em que a viu, de cabelos presos em uma trança loura na festa junina da igreja. Se recorda do primeiro beijo, depois do circo. Da formatura do curso de música – ela ao piano; ele, a acompanhando na flauta. Se recorda de mais de sessenta anos de amor e companheirismo. Se recorda, nota por nota, da sua música favorita.

 Arruma os seus cabelos e fecha, com cuidado, o avental sobre o seu dorso, para protegê-la de uma corrente de ar e dos olhares mais maldosos. Acaricia o rosto pálido e as pálpebras, que protegem aquele olhar que já não voltará mais a contemplar. Antes que sua memória se afaste novamente, ele precisa manter na mente que está diante dos dois amores da sua vida: um tubo metálico e um anjo de olhos cinzentos.

 – Amor!... – Uma lágrima escapa e, sorrateira, vai molhar o rosto da amada. Ele a enxuga com carinho. – Oh, meu Amor, lamento não ter te dado muito nos últimos tempos!... – mas não há tempo para chorar, nem para desculpar-se: é tempo de perdoar e deixar-se ir.

 Tempo. Bip-bip. Allegro.

 A flauta volta a lhe beijar os lábios. Os dedos, trêmulos, se posicionam novamente, como em todas as fracassadas tentativas anteriores. Ela merece um último esforço.

 A embocadura é perfeita. As notas saem e se espalham pela UTI - a princípio, tímidas e hesitantes, mas, após um ou dois compassos, brilhantes, vívidas, imponentes. A melodia de Bach preenche os espaços e as almas vazias, os dedos correm pelos orifícios e chaves e o flautista, ao lado da amada, dança um Allegro sozinho, esbarrando vez ou outra nos equipamentos próximos. Termina a suíte com uma fermata, acompanhando o metrônomo improvisado, e lança uma última olhada para o rosto inerte à sua frente.

 E, então, o rosto que ele se acostumou a contemplar durante toda a vida faz seu derradeiro movimento, e sorri, como a lhe dizer “Muito obrigada pela música!”, poucos segundos antes de o bip-bip do metrônomo tornar-se um apito contínuo.


Conto vencedor do 2⁰ Concurso Aline Alencar - 2024, com o tema: "O Som do Amor"