quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Qual você

Já te escrevi milhões de cartas que você nunca leu;
Milhões de versos de amor e ódio.
Já te chamei dos mais abomináveis nomes
Na tua cara, frente a frente,
Olhando no fundo dos teus olhos,
Com os olhos da minha imaginação.
Já te maltratei, já te surrei, já te humilhei frente a todos
Dentro do meu quarto escuro e vazio,
Onde nem mesmo eu estou.
Já te fiz juras, já te fiz sexo, já te abracei até sentir sua pele em chamas
Em meio aos travesseiros frios.
Até sentir seu cheiro e seu suor e seu gozo incontrolável
Em meio aos lençóis recém-tirados do varal.

Já te fiz carinhos que você nunca recebeu,
Já te dei experiências que você nem sabe que viveu,
Já te fiz mulher como você sempre foi.
Já desisti de você infinitas vezes,
Já te tratei como uma vadia.
Já te implorei perdão em segredo.
Tudo, tudo em segredo.

Quanto já não te ajudei
Nas tarefas de casa
No trato com as crianças que nunca tive
Que nunca tivemos...
Quanto já não nos sentamos à sala,
Assistindo filmes e tomando vinho
E encaixando um amor entre um filme e outro...
Mas você não sabe, nunca soube.
Nunca quis saber nem imaginar.
Seu medo é maior.
Medo de que o filme acabe
De que o vinho acabe
De que o amor acabe.
Ou mesmo que nem se inicie.
Seu medo nos afasta mais e mais, por montanhas e oceanos.

Ainda estou aqui. Ainda tenho você em todos os momentos,
Você, a ideal, a merecedora do meu amor
A que me acorda com um beijo e um sorriso
A que permanece na minha cama, a guardar o seu lugar nela,
enquanto eu tenho que me levantar.
A que deixa seu cheiro impregnado no ar,
Como a marcar um território que você já sabe que é seu.
Não você
A fraca,
A covarde,
A longe.
A conformada em não amar.
A que tem medo de ferir amando.
A que tem medo de perder o que já tem.
A que não consegue unir duas vidas,
Dois universos.
Não você que está aí
Também sozinha, também em busca do ideal.
Também minha, mesmo sem saber de mim.

Não, seu medo não nos afasta:
Seu medo me aproxima de você;
Tivesse eu a chance de estar ao seu lado
Por um dia
Um mês
Um ano
Uma vida
Provavelmente teria a capacidade de te ver tal como você é
Em todos os defeitos e todas as imperfeições
Em toda a sua vulnerabilidade e idiossincrasia;
Provavelmente perceberia que não me serves,
E, logo, me cansaria de você
Enjoaria de ter seus beijos e seu parco amor,
E iria embora, de vez, da sua vida,
E resolveria todos os seus problemas,
E os meus,
Mas, se tudo o que posso ter de você
São sombras de um amor ideal,
Não poderei te esquecer jamais...

Não quero o ideal.
Não sou Tereza nem você é Tomás.
Somos seres reais, um pouco de Tereza, de Tomás,
De Sabina e de Franz.
Temos, ambos, desejos reprimidos
E anseios impossíveis.
Abrimos mão de muitas coisas
E exigimos outras tantas.
Aprendemos, enfim, a respeitar as limitações do outro
Ao perceber as nossas próprias limitações,
E a dar menos importância para picuinhas e ranzinzices
Quando temos valores maiores para cuidar.
Não quero o ideal. 
Somos pessoas de carne e osso vivendo num mundo de fato
E não numa Boêmia imaginária
Onde moram todos os estereótipos e mitos de sentimentos alheios.

Não, não quero o ideal.
Quero seu cheiro de suor, quero seu mau-humor, quero suas noites de enxaqueca.
Quero sua irritação e sua angústia,
Sua raiva e seus acessos de ciúme.
Quero te magoar e quero me magoar contigo.
Mas não quero mais me decepcionar.
Quero que meus travesseiros sintam o peso real do seu corpo em chamas
E quero que você me ponha para fora todas as manhãs, para eu poder trabalhar.
Quero te ajudar a cuidar das crianças,
Não as minhas,
Não as nossas,
As suas.
Quero te desagradar constantemente, em busca da minha própria individualidade,
Do meu próprio espaço.

Esta você, que está aqui,
Comigo
Sobre mim
Dentro de mim
Esta você que me diz palavras doces,
Que me faz todas as vontades,
A quem eu posso descarregar todas as minhas frustrações e anseios,
Esta não me serve.
Esta está dentro de mim
E você, do outro lado do universo.
Mas eu sei bem qual das duas está mais perto.


Um comentário:

  1. 1. Tereza, Tomás, Sabine, Franz e a tal Boêmia imaginária pertencem à Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera. Quem não leu, leia e quem leu, re-leia, e este poema fará ainda mais sentido.

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