segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Reflexão dos Trinta e Cinco Anos

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Tenho trinta e cinco anos. Esta, para muitos, é a verdadeira meia-idade: após os setenta, poucos têm a possibilidade de dizer que realmente vivem; na maior parte das vezes, septagenários não podem ficar sozinhos, vivem para tomar remédios, gastam toda a economia angariada durante a vida em planos de saúde, e o que sobrar será disputado a tapa pelos netos que o odeiam, e que mal podem esperar para vê-lo morrer - para, enfim, herdar na marra aquela casa velha na praia. Andam com dificuldade da cama para o banheiro, do banheiro para a cama, da cama para o... ih, não deu tempo. Enfermeeeira!
Há muitos setentões em forma, eu sei. Aqueles que durante toda a vida abdicaram do álcool. Da gordura. Do cigarro. Das mulheres. Da carne de porco. Estes, certamente, estarão muito bem nas suas setenta primaveras. Mas, pergunto eu, se tiver que abdicar de tudo isso, para que chegar aos setenta? Para continuar vegetando como já vinha fazendo desde os oito? Não me parece um bom negócio. Eu nem mesmo chamaria isto de “setenta primaveras”; seria mais justo classificar como ‘setenta tenebrosos invernos”.
Tenho trinta e cinco anos e estou cansado.

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Sintomas da depressão: nada do que você faz te agrada.
Quis ser músico. Estudei música. Me formei em música. Pronto! Agora poderei viver de shows! Comes-e-bebes de graça, moleques pedindo dicas e meninas loucas para transar com você! Mas não é bem assim; músicos são como moscas, sobrevoando a menor oportunidade. Você tem uma tendinite, fica dois meses se tratando, quando sara já perdeu toda a mecânica da coisa. Demora mais seis meses para voltar ao que era antes. E, aí, todo mundo já te esqueceu, porque o moleque que vivia te pedindo dicas estudou bastante nesses oito meses e hoje já está muito melhor que você. Espere a próxima oportunidade.
Mas eu consegui. Fiz muitos shows. Fui muito aplaudido e muitos moleques me pediram dicas, desesperadamente. O desespero deles virou aulas, virou dinheiro no bolso. Mas, acredite, subir num palco e ter que tocar para um monte de gente, quando você bem queria estar em casa lendo um bom livro, é terrível. Você tem que fazer cara de alegre, tem que afinar a voz, afinar o baixo, tentar não errar muito e, quando errar, tirar um coelho da cartola e fingir que era exatamente aquilo que você tinha em mente fazer desde o início. Não, não é fácil.
Então decidi mexer com madeira. Fiz móveis, fiz esculturas. Entalhei poemas em lápis de cor. Entalhei rostos em giz de lousa (ok, isso não é madeira, é só um exemplo). Montei meu quarto inteiro: cama, rack, escrivaninha, guarda-roupa. Titia veio: “Que bonito! Faz um pra mim?”, e depois veio vizinho, ao olhar o quarto de titia: “Que bonito! Quanto você cobra?”, e depois veio desconhecido ao olhar o quarto do vizinho: “Nossa! Que lindo! Também quero!”...
Cansei.
Me meti com desenho. Fiz um desenho. Gostaram. Fiz outro. Dei de presente. Fiz outro. Vendi. Fiz mais um milhão de desenhos. Minha vida são desenhos, minha vida é comprar pincéis, tintas e pastéis-secos. Minha vida é pintar rostos de famosos, que me servem de propaganda para cobrar por rostos de desconhecidos. A dondoca vê aquela minha pintura de um rosto maravilhoso da Audrey Hepburn, cheio de luz-e-sombra, retratado por uma Annie Leibovitz com uma Leica M3, e quer um igual. Me manda um selfie dela mesma, no casamento da sobrinha, no escuro, tirado com uma Tecpix e um flash vagabundo. E eu tenho que fazer aquilo ficar bonito. Entenderam o conceito de “artista”?
Cansei de novo.
Me meti com programação. Era muito nerd para meus amigos de futebol e era muito subversivo para os meus amigos nerds. Não consegui empregos, mas todo mundo me pede para “arrumar o meu PC”, “formatar o meu HD”, ou, ainda, “Dá pra consertar o notebook que a minha filha derrubou do décimo andar?”. Isso não é trabalho de programador, meu Deus. Isso é trabalho de mágico. Em todos os lugares que trabalho, sempre consigo criar programas que facilitam o serviço. Havia um trabalho que era feito em cinco horas; com meu novo sistema, ele é feito em um clique. Todos deveriam me adorar e se postar aos meus pés, me dar um aumento e me deixar ficar em casa: “Quando a gente precisar de novo, você volta e resolve todos os nossos problemas, ok?” Ok. Mas não é assim que funciona. O que eu ganho é mais trabalho, já que agora tenho muito mais tempo livre. Isso não me parece nada justo. Desisti de programar coisas.
Tentei escrever. Escrevi uma história que ninguém leu, publiquei um livro que ninguém comprou, tenho um blog que ninguém visita. Todos me dizem: “Como você escreve bem!”... É fácil dizer isso quando ninguém lê. É como dizer: “Eu serei sua amiga se você nunca mais falar comigo.” É como dizer: “Eu te amo, e por isso vou embora para nunca mais voltar.” Não quero que me digam: “Seus textos são ótimos, pena que eu nunca os li.”
Fui estudar Mecânica. Construir máquinas, automatizar processos, criar tecnologia. Desenvolvi muitas coisas, que facilitaram a vida de outros. Me formei numa faculdade pública de prestígio. Vou trabalhar na indústria? Apertar botõezinhos o dia inteiro, como um garoto do ensino médio - e ganhando um salário indigno até mesmo para este garoto? Vou fundar minha própria empresa, criar um império? Façam-me o favor!...
Sintomas da depressão: nada do que você faz te agrada. Mesmo quando você sabe fazer um monte de coisas. Eu queria ser totalmente desprovido de qualquer habilidade ou inteligência, e ser bom em uma única coisa. Uma só. Eu seria, digamos, um bom saltador. E passaria minha vida inteira desenvolvendo esta única habilidade, já que saberia que não ia adiantar me esforçar em matemática, física, artes, trabalhos manuais ou literatura. Seria um grande saltador e construiria minha vida em torno disso, saltando por todos os lados. Hoje eu sei fazer infinitas coisas. Sou muito bom em todas. E sou um completo fracasso.
  

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Fui uma criança super-dotada.
Um adolescente acima da média.
Um jovem muito inteligente.
Um adulto normal.
Tenho medo de me tornar um velho medíocre.

Quando eu tinha nove anos, plantei uma árvore, mas ela não vingou.
Quando eu tinha dezesseis, escrevi um livro, mas ele não foi publicado.
Tenho medo do que serão os meus filhos.

Tenho escrito pouco; me enfadam minhas próprias crônicas...
Tenho sido crítico demais, seco demais...
Tenho abandonado tudo o que não seja perfeito.
Tenho rasgado os meus poemas, antes mesmo de terminá-los, 
Por não julgá-los dignos de preencher uma folha que seja.

Tenho lido bons autores e me cansado deles,
Tenho sido extremamente intransigente com textos medianos
Como os meus.

Ou eu preciso de um psiquiatra
Ou de um blog. 
Mas o blog eu já tenho e ninguém lê.
Tenho medo de procurar um psiquiatra que não me ouça.

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Sou um ateu que ama uma Divina. Existe maior paradoxo do que este? A única coisa que posso concluir é que Deus é um brincalhão. Mas se esta for minha conclusão, terei de inferir que acredito em Deus, e, portanto, não sou mais ateu. E, se posso acreditar em Deus, por que não deixar de amar a tal Divina?...

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Deus disse a ela:
“Por que nunca se acertaste com sua alma gêmea?”
E ela respondeu:
“Ora, Deus, nunca consegui encontra-la!”.
Ao que Deus retrucou:
“Eu o coloquei à sua frente desde a tenra idade, cruzei suas vidas inúmeras vezes durante vinte anos, fiz sua alma gêmea mudar infinitas vezes para te agradar, e o fiz te perdoar infinitas vezes pelos seus insultos, pela sua falta de sensibilidade. Cicatrizei infinitas vezes suas feridas, causadas pelas mágoas a que você o submeteu. Não, esta desculpa eu não vou poder aceitar.”
A mulher ainda tentou se recompor:
“Mas, após todos estes anos, eu finalmente percebi o quanto ele era importante para mim, e, então, não consegui mais a Sua ajuda para reconquistá-lo.”
Deus pensou, coçou a barba, e encerrou a conversa:

“Pois é. Às vezes Deus também se cansa.”

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