sábado, 10 de maio de 2014

As várias formas de ser um líder



Sertão Nordestino, meados de 1.936. Pertencia eu ao famoso e procurado grupo de cangaceiros, liderado por Virgulino Ferreira, o Lampião. Resolvera parar em frente à toca-d-diabo, gruta camuflada na vegetação dura do cerrado de Pernambuco. Ia “rezorver um carzo” nas terras do Coronel Malhada, político engenhoso e de cabeça feita, costurada para roubar, matar se for preciso. O chão quente, duro como muitas verdades que nos são jogadas na cara, serviria de leito para o bando. Virgulino bradava!
- Cambada de porcos! Trabalhem, vagabundos! Ponham estas barracas de pé!!!
E fazia seu enorme facão descer sobre galhos, moitas e o que mais lhe viesse à frente.
Lampião. Esse curioso apelido deu-se ao dia 15 de agosto de 1.928, quando, em terras paraibanas, num dos seus primeiros tiroteiros como líder do grupo, matou quase toda a guarda de Campina Grande. Dias depois foi enviada uma carta ao governador, desviada por mim, que fôra parar nas mãos de Virgulino: “O líder desse bando é um ótimo pistoleiro”, era o que dizia a carta. “Visto de longe, seu revólver dispara tão rapidamente que mais parece um lampião quando aceso.”
Apesar de suportar tal apelido, Virgulino fôra sempre aquele ditador do grupo. Nós, pequeninos seres diante do Golias-Lampião com seu facão sempre disposto a descer sobre pescoços, fossem eles culpados ou inocentes. A verdade é que, ali na toca-do-diabo, Lampião deixava de ser o temido para ser foragido. Apesar disso, não perdia aquela postura de chefe, de líder, e era aí que impressionava a todos nós, e, como um ímã, fazia com que o seguíssemos.
Ninguém dobrava Lampião? Não, não é verdade. Uma morena bonita e formosa de nome Maria era o único ser no Mundo capaz de amansar a fera Lampião. Maria Bonita; assim a chamávamos. Por ela, Virgulino seria capaz de sangrar a todos nós e acabar com o cangaço no sertão nordestino. Bastava um pedido daquela moça.
Barulho no cerrado. O acampamento silencia, o trabalho cessa. Lampião ordena a um dos seus ir ver. Ambos sabiam que se tratava de outro bando. Sabiam também que o pobre diabo iria morrer, mas isso não abalava em nada a Lampião. Se ele o seguiu, se estava disposto até à morte por seu patrão, era essa a hora de provar.
O pobre vai até um descampado. Levanta a arma, dispara para o alto apenas três tiros. É baleado; cai no chão, agonizando. Mas é o suficiente para que Lampião o vingue. Estavam ambos os grupos cercados. É apenas mais um bando que atrevera-se a desafiar a fúria de Lampião. A pobre cobaia, que levara dois tiros na cabeça e tinha em seu corpo cravadas mais de vinte chumbadas, ainda sobrevivia.
O facão de Lampião sobe. E tão logo desce, fazendo esguinchar sangue do pescoço do mártir. Nem cem tiros do melhor trabuco valeria mais do que um só movimento do seu facão. O morto é coberto de terra e palha, e a caravana parte então para Petrolina. Ali morria, junto com o falecido, o assunto, como se ele nunca tivesse se juntado ao grupo.
Cada vez mais, cresce a indiferença de Lampião para com o bando. Ele mandou, tem que cumprir. Não cumpriu, é bala.
Chegávamos, quatro dias depois, nas bandas do Coronel. A primeira parte da chacina começou já em Caruarú, quando uns capangas do “Sinhozinho Malhada” resolveram dar um fim nesse assunto. Pobre engano...
Finalmente, chegávamos até Caranhuns, ao sul pernambucano. O coronel de um lado, Virgulino de outro. Ia ser uma batalha interessante. Uma batalha que eu não teria o prazer de ver. Fui atingido, baleado, apedrejado. Covarde, fugi. Mas não Virgulino. Ficou, lutou e ganhou, mais uma vez. E foi embora. E eu fiquei para trás. Eu e o meu cavalo.
Três dias depois, chegaria a Salvador. E lá viveria feliz, em paz, livre. Sem ter que obedecer a nenhum cangaceiro ou chefe. Um chefe que não teve muita escolha na vida. Perdeu o pai, assassinado pelos Nogueira, por causa de terras, e depois de ter matado tal família, tornou-se para sempre foragido. Dois anos depois, numa espreitada à fazenda Angico, em Sergipe, o bando foi cercado pelas tropas do tenente Bezerra. E o grupo foi dizimado, Lampião, Maria Bonita e outros nove foram mortos, degolados, e tiveram sua cabeças expostas na praça central de Aracajú.
E seus corpos foram enterrados na comarca de Vila Bela, cidade natal de Virgulino, atual Serra Talhada.
Ali morria o cangaço? Não. Corisco, o “Diabo Loiro”, antigo integrante do nosso bando, ainda tentou vingar a morte do líder, mas já era tarde: o cangaço já havia perdido as suas forças. E Corisco foi para junto de seu chefe, morto em 1.940. Era ali que acabava a força dos chefes do cangaço no Nordeste. E essa soberania acabou por se espalhar por todo o brasil, em 1.950. E oito anos depois o Brasil seria campeão mundial de futebol, tendo no comando de uma constelação de craques Pelé, o líder-exemplo, que nunca mandou nem ordenou nada em campo.

Tiago Bianchini Fidalgo, 27 de março, 1.992

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