sábado, 10 de maio de 2014

“IMAGINARY LANDSCAPE” - Cartelas para um artigo aleatório

- Pode-se ler o texto seqüencialmente, da forma em que ele está disposto nas páginas seguintes;
- Pode-se imprimir as folhas separadamente e embaralhá-las, de acordo com as Cartas do I Ching – neste caso, dependendo da ordem que elas forem dispostas, o artigo poderá sofrer mudanças de pontos de vista, ao longo da leitura.


CARTELA I:
O estudo da música no século XX encontra analogia em todas as demais áreas nas quais o século XX teve influência: em um desfile de moda, por exemplo, é comum que se encontrem aberrações que jamais seriam aproveitadas no cotidiano: tais excessos fazem parte de uma extrapolação do criador e podem servir de parâmetro ou tendência para a produção de um vestuário mais acessível e viável. Da mesma forma, diversas vertentes da música contemporânea não precisam ser vistas como formas “definitivas” ou “consagradas”; ela também é fruto de excessos, de experimentalismos levados às últimas conseqüências, que podem ditar caminhos para obras mais centradas, talvez até mais audíveis, como as trilhas para o cinema. O ser humano do século XX, em sua maioria, é um ser humano com princípios e conceitos presos ao século XIX: assim como existe a dificuldade de se aceitar uma blusa confeccionada com restos de garrafas plásticas como sendo uma peça de vestimenta, têm-se a mesma dificuldade em compreender ondas de freqüência e senóides como sendo “música”, o que não diminui, de modo algum, sua importância.


CARTELA II:
O que é música concreta? Qual o real sentido de termos como “eletroacústica” ou “computer music”? A definição de uma nova categoria musical tem de passar necessariamente por conceitos tecnológicos? Devemos imaginar a música concreta como “colagens de fitas magnéticas”? Devemos descrever a música estocástica como “manipulação de freqüências e ondas senóides produzidas por aparelhos eletrônicos”? Ou será que, na verdade, estamos representando um conceito, uma sensibilidade, e que, por falta de um termo mais apropriado, nos valemos das “palavras técnicas”? É possível e viável obter efeitos semelhantes a partir de instrumentos musicas tradicionais ou aparelhos mecânicos – e, na verdade, o resultado final do que se chama “computer music” pode ser obtido sem a necessidade de um computador. Qual a razão, então, para que se atrele às características musicais deste movimento, necessariamente, conceitos “eletrônicos”? Talvez seja outra “unanswered question”...


CARTELA III:
Sobre Pierre Schaeffer, quantos sons diferentes cabe em uma nota? O que diferencia, em tese, um Lá 440 Hz tocado em um baixo elétrico do mesmo Lá 440 Hz tocado num piano de cauda? Uma resposta extremamente simples – e correta – seria “o timbre”. Mas isso ainda diz muito pouco. Na verdade, é extremamente difícil encontrar na natureza – incluindo aí os instrumentos musicais tradicionais – uma onda sonora “pura”. O lá 440 Hz em questão, tanto no contrabaixo quanto no piano, é constituído de incontáveis sobreposições de ondas, realimentações, amplificações – da mesma forma que um gerador de áudio “eletroacústico” (um exemplo mais esclarecedor talvez sejam as “micropolifonias” de Ligeti). É desta complexa interação de fenômenos físicos que conseguimos discernir um instrumento de outro. E isso não é uma “exclusividade” do século XX – quando Mozart pensava na “timbragem” das suas seções de madeira, estava praticando este estudo, ainda que sem os conhecimentos técnicos e de maneira inconsciente. Todos os elementos já estavam lá – a acústica, as ondas, as freqüências – e ele já as tratava, manipulava, modificava. Se somos capazes de diferenciar, instintivamente, dois “sons” extremamente complexos, e classificá-los como “isto é um baixo” e “isto é um piano”, creio que esta mesma habilidade exista, embora latente, quando nos referimos ao “eletroacústico”. O que falte, talvez, seja um conhecimento maior, uma familiaridade maior, uma “literatura musical” mais abrangente. A natureza, aliás, não é “temperada”: os eventos sonoros encontrados nela não correspondem, de forma alguma, a um “sistema tonal” mensurável: o que existe são séries de microtons, ondas que se modificam mutuamente, eventos caóticos e – por que não – sons “aleatórios”; portanto, creio que não fosse apropriado atribuir os conceitos “concreta”, “aleatória”, “estocástica” exclusivamente a equipamentos eletrônicos.


CARTELA IV:
Pierre Schaeffer diz que um som entra em contexto musical quando entrelaçado a outros sons, criando relações entre eles. Sendo assim, como classificar como música o silêncio “puro”, ou uma peça como “4:33” de Cage? A ausência de som, por si só, pode ser considerada música? Um tempo de pausas entre um compasso e outro, numa peça de Bach, é fundamentalmente parte da música; o que acontecerá, entretanto, se o silêncio não for precedido ou sucedido por qualquer outro “som”? Um lavrador cava um buraco; ele não é capaz de cavar “meio-buraco”: mesmo que cave outro buraco com metade do tamanho do primeiro, este sempre continuará a ser um buraco. Poderá haver, então, dois “meio-silêncios”? Uma única nota, solta ao léu e sem relação com nada que a preceda ou suceda, pode ser considerada uma “obra musical”? Sendo assim, poderíamos chamar “música” tanto um relógio que desperta quanto um primata que bate no próprio peito ou o barulho que a água faz no mergulho do golfinho. Mesmo as árvores ou os seres inanimados, como o vento, produzem ruídos, que não são, por si só, “música”. A música é, em princípio, uma arte; e é pré-requisito à arte ter sido feita pelo homem. Seria de extrema prepotência supor que nós – e exclusivamente nós – sejamos os responsáveis por quatro minutos e meio de silêncio.


CARTELA V:
Não vejo nenhuma objeção aos “instrumentos musicais eletrônicos”. Pode-se argumentar que na verdade se trata de aplicar a tecnologia sobre a percepção auditiva, o que, de certo modo, é uma verdade inerente a qualquer outro instrumento: foi necessária uma “tecnologia” para transformar o couro animal em um tímpano, para cortar com exatidão as peças de um xilofone ou para fundir o metal da tuba. Nem mesmo a idéia de que “um gerador eletrônico ou um computador produz o som sozinho” deve ser considerada: ele necessita de um operador; fosse assim poderíamos considerar que um órgão também tem um funcionamento “próprio”. O que intriga, na verdade, é a linha que distingue a música feita a partir destas “colagens” eletrônicas de quaisquer outras colagens – se é que esta linha existe. Então uma sobreposição de sons da natureza, através de meios eletrônicos, é música? Quem formaliza, determina ou institui os processos internos desta sobreposição?  A natureza, por si só, cumpre com a sobreposição de diversos sons simultâneos, sem a intervenção do homem ou da eletricidade. Seria esta uma “música aleatória” produzida “ao acaso”? Seria isto “música”, antes de mais nada? E, se for, isto não contraria a própria definição do que é música, do que é arte, do ponto de vista humano?  Um pintor pode emoldurar um vidro transparente e colocá-lo em frente ao lago. O que é a arte: o vidro ou o lago? Da mesma maneira, chamaremos “música” o simples processo de colagem (vidro) ou o som resultante deste processo (lago)? Nenhuma das duas alternativas me parece apropriada.
Além do mais, mesmo que nos prendermos unicamente aos processos, veremos que, de maneira geral, ainda nos falta uma metodologia confiável. O que parece é que tudo é feito puramente com base na “tentativa-e-erro”. Um som gravado ao acaso produz resultados tão imprevistos que é impossível acreditar que o “compositor” buscava aquele efeito, aquela textura, desde o começo. Bach não utilizava quintas paralelas ou dissonâncias sem resolução – ele sabia de antemão qual o efeito de tais usos, e podia prever com exatidão se seriam úteis ou prejudiciais às suas composições. Um compositor de “música aleatória”, “música concreta” e outras tendências, não tem a menor idéia de como será o resultado final de sua obra – ele é um passageiro na situação, tanto quanto nós. Na verdade, podemos nos considerar tão “compositores” da sua obra quando ele próprio – ou até mais que ele, uma vez que os sons por ele colhidos podem ter sido produzidos por nós. Em tese, o compositor apenas “ordena” os sons alheios, da mesma forma que um editor de livros condensa poemas de outros autores em uma única antologia, e nem por isso pode ser considerado “autor” ou “poeta”. Isto posto, alguém que “cole” sons de terceiros pode ser chamado de “músico”?


CARTELA VI:
Xenakis diz que a relação música-tecnologia está estagnada porque é dependente de estereótipos sonoros predeterminados por construtores de instrumentos eletrônicos. Em outras palavras, cria-se um aparelho ou programa que faça determinadas operações com os sons e se explora-o, de modo a se obter sempre uma gama de resultados “da mesma família”, de maneira quase padronizada. Para uma mudança mais radical dos resultados, recorre-se à criação de outro aparelho, de outro programa. O mais interessante, ao contrário, seria uma nova forma de racionalização, um desenvolvimento da criatividade musical ao invés do desenvolvimento da ferramenta (aparelho). Dizemos que uma obra é “pianística” ou “violonística” quando é composta respeitando os padrões mecânicos ou de digitação específicos daqueles instrumentos: Chopin e Lizst deixaram obras estereotipadamente pianísticas; Paganini fez o mesmo com o violino. Poderia então surgir um estilo “senoidalístico” de composição? A construção musical específica para um aparelho está sempre atrelada a uma limitação técnica ou sugere um processo criativo específico. De certo modo, um bom violinista consegue executar uma peça para Oboé de Mozart com relativa fidelidade, da mesma forma que existem transcrições para piano de obras orquestrais e vice-versa (Ravel foi mestre nisso). Me parece impossível obter um mínimo de fidelidade de uma obra do século XX ao tentar reproduzi-la a partir de outros “instrumentos” – e muitas vezes até mesmo a partir dos mesmos instrumentos. Isto demonstra não uma dificuldade técnica-tecnológica para a construção de instrumentos mais “versáteis”: antes, demonstra a fragilidade da metodologia composicional, dos parâmetros estruturais e da coerência musical ao que se convencionou chamar de “música” do século XX.


CARTELA VII:
Não deixa de ser curiosa a maneira como a “evolução” é cíclica: na música renascentista, haviam indicações de acompanhamento (o baixo cifrado, por exemplo) sobre o qual o instrumentista harmônico (cravo ou alaúde) era “livre para improvisar”. Para dar uma homogeneidade maior às execuções e evitar que cada apresentação saísse completamente diferente das outras, músicos como Bach passaram a escrever todas as notas, sem dar espaço a “improvisações”. Aliás, a própria notação musical surgiu da necessidade de se estabelecer uma metodologia mais eficiente contra os abstratos conceitos de “maior” e “menor” (maior quanto? Menor quanto?) ou “grave” e “agudo”. De maneira geral, o século XX resgata essa aleatoriedade, seja na música eletroacústica, seja nas improvisações de jazz. No fundo, estamos tão-somente nos alimentando de fontes existentes há 400 anos, na busca de uma linguagem que se pressupõe “nova”. Cabe aqui outra pergunta – o que é mais abstrato: a precisão mensurável das partituras tradicionais ou o inexplicável, o incomunicável implícito na música dita... “concreta”?


CARTELA VIII:
É importante deixar claro algumas coisas: Primeiro, não se discute a genialidade de algumas obras – o que está sendo questionado é se são música ou, em última instância, arte; Segundo, que conceitos sócio-políticos, por si só, não servem de alicerce para um novo conceito musical. Se fosse assim, cada banda de rock que surgisse inauguraria uma nova fase na História da Música (não estou distinguindo entre popular e erudito porque este conceito está muito dissolvido na música do século XX – uma guitarra elétrica é um “gerador de áudio”; qualquer grupo de pop music pode ser considerado “música eletroacústica”, pelo menos do ponto de vista técnico). Terceiro, porque a diversidade de conceitos, a falta de unidade e coerência dos parâmetros de análise, deixam a obra musical do século XX à mercê de avaliações subjetivas, que nem sempre levam em conta a “qualidade” musical: imaginemos que eu, um estudante de música de um país de Terceiro Mundo, de repente descobrisse uma obra inédita de Bach, nos seus melhores momentos. Obviamente, uma análise musical da peça me mostraria que ela é perfeita, do ponto de vista formal, harmônico, motívico, etc. Então suponhamos que eu, ao invés de dizer que “encontrei um Bach”, decidisse publicar a peça como se fosse minha. Embora vinda de um “compositor” desconhecido de um país sem tradição, ninguém duvidaria da genialidade da obra, pois ela seria analisada com base em parâmetros bem definidos. Agora imaginems o contrário: que eu “compusesse” uma peça como “4:33” de Cage (antes dele, é claro) e a publicasse. Uma obra dessas, vinda de Cage, é genial e revolucionária; vinda de mim, é uma brincadeira sem-graça de um estudante que não entendeu o conceito. Ou seja: no século XX, mais que qualquer outra época, falta senso crítico, falta parcimônia analítica – falta diretrizes estéticas que dêem credibilidade ao movimento.


CARTELA IX:
É interessante que a “evolução cíclica” já se faz perceber: nas últimas décadas, todo o entusiasmo e furor da música de vanguarda parece ter esfriado: novas tendências mais acessíveis têm surgido, pelas mãos de compositores como John Corigliano, Górecki e Rautavaara. Mesmo no jazz, a sensação do “free jazz” nos anos 60 há muito deixou de ser vista como “ultranova”. Em todas as vertentes, um novo conceito estético musical – que remonta a critérios tradicionais, eficientes e consagrados – parece estar ganhando forma. A vontade de chocar, de questionar, de subverter, que nasceu com força desde o atonalismo, parece ter sido saciada – como uma criança que quer um brinquedo da vitrine e, após brincar alguns minutos, já não vê graça e o deixa. Intrinsecamente, isto emonstra que a simples busca pelo novo, a simples vontade juvenil de chocar, por si só, não servem de base para a criação de um novo espaço de atuação musical, sem que tenham uma plataforma formal sedimentada. Se a música do século XX foi proeminente em experimentalismos, ânsia de chamar a atenção, desejo de atitude, creio que faltou a ela, de maneira geral, algo mais consistente, um pilar de sustentação; faltaram noções estéticas e formas mais sólidas, permanentes, inquestionáveis; faltaram parâmetros que permitissem a análise mais objetiva. Ainda é muito cedo para conclusões finais – de certa forma, a década de 50 ainda não deixou de acontecer musicalmente – e estamos muito próximos dos fatos para ter uma visão geral. Mas me parece que a maioria das tendências de vanguarda do século XX vai passar pela história como um pequeno desvio do curso evolutivo da música, uma série de experiências “isoladas” de um grupo de “pesquisadores” ( e não “compositores”, como se quer acreditar) – enfim, como um biquíni feito de plástico e restos orgânicos de cor verde-limão, que ficou esquecido num desfile nos anos 80.


Tiago Bianchini, 2005. 
Trabalho de conclusão do curso de música da Fundação das Artes de S. Caetano do Sul (trecho extraído da disciplina de História da Música, ministrada pela profa. Regiane Gaúna, que, me lembro, não gostou nada da petulância das afirmações do aluno em questão).

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