Quem me leu “O garoto que ninguém entendia” há de se lembrar que o Cristiano sempre gostou de desenhar, mas eu era o “artista” da turma. Foi mais ou menos quando eu comecei a ter algumas aulas com a Maria de Fátima; ela dizia que eu deveria “aprender os rudimentos da pintura” para poder desenhar melhor. Ao passo que eu, meio que de má vontade, ia pegando o jeito e conhecendo mais as obras de arte dos grandes pintores do passado, o Cristiano ia extra-oficialmente tentando imitar os desenhos bonitos que ele via nos livros em francês da mãe dele. A Fátima me dizia que “o título é muito importante para a compreensão da obra”; que “o uso das técnicas define o estilo do artista, e sua conseqüente criatividade”; que “o que vale é a beleza estética do quadro, e não necessariamente a sua fidelidade ao real”. Quando ela começou a me obrigar a segurar o lápis da maneira convencionalmente “correta”, eu vi que aquela história de aula de pintura nunca ia dar certo, mesmo. Procurei ficar como um pequeno geniozinho que havia desperdiçado seu talento com os desenhinhos da escola, a ter que me contentar em ser um grande pintor, assim, igualzinho aos outros.
Mas o Cris era daqueles que achavam que a prática faz o artista, e desenhava uma folha atrás da outra. Em pouco tempo, havia enchido uma pasta, dessas de papelão, com seus trabalhos, alguns bons, outros nem tanto. Devia ter ali muita coisa horrível, também, mas tudo bem: ele não tinha os conhecimentos que eu – agora – julgava ter.
Foi quando ele veio me mostrar, um belo dia, todos os desenhos que havia feito; foi numa hora do intervalo em que a chuva não deu trégua e o joguinho de futebol, um clássico contra a temível sétima série, teve que ser cancelado. Ele começou explicando que tinha experimentado várias formas artísticas, e que tinha gostado mais de um determinado cubismo, em que você dá a idéia do que quer mostrar através de sobreposição de figuras geométricas.
- Você acha que este está bom? E este outro, aqui: olha só, como ficou bonito!
- Cristiano – eu disse – o importante não é fazer um monte de quadrado e sair pintando: é saber usar as formas para expressar o que você quer dizer. – dizia isso para parecer um expert no assunto; na verdade, a Fátima é que me havia dito isso tudo.
- Sério?! Você aprendeu isso com a professora Maria de Fátima?
- Isso e muito mais.
Pude sentir o calor da sua inveja nos olhos; era tudo o que ele queria na vida: aprender com a Fátima, ter alguém que prestigiasse seus desenhos e o incentivasse, como a Fátima fazia comigo. Sabia da sua admiração por meus trabalhos; era por isso que ele sempre vinha me mostrar as coisas que fazia. Mas o que me dava um prazer sórdido era demonstrar que sabia mais do que ele; que, por mais que ele fizesse, era eu quem tinha as respostas, era eu quem sabia o que estava fazendo. Ele aceitaria as minhas opiniões com toda a atenção; e nem se importaria com a minha soberba e prepotência, o que me fazia sentir-me como um semideus.
Comecei a tecer vários conceitos que a Maria de Fátima me ensinara, e uns outros que eu ia inventando na hora; ele prestava atenção e, às vezes, até anotava alguma coisa. Eu sentia como que se o rebaixasse, o que me fazia sentir bem, embora eu gostasse muito do meu amigo. Ele não se importava: queria aprender e nem ligava para a minha pretensão. Culminou dizendo:
- Bom; tem este aqui, que eu acho que tem essas coisas aí, que você falou. Veja...
Tirou do final do maço de desenhos um feito com lápis de cor; usava formas geométricas, como um vitral. As cores, magnificamente bem distribuídas, equilibravam o desenho com insuportável leveza. Os traços fortes e decididos se via pelo desenho todo: era de uma técnica brusca fascinante. O Cris brincava com as curvas, bolas e retas num dinamismo diabolicamente incrível. Fiquei assim, uns instantes, tentando achar um defeito para ridicularizar o desenho dele; não consegui: tudo o que aprendera com a Maria de Fátima estava lá, num único pedaço de papel, de alguém que não tinha conhecimento teórico de tudo aquilo que havia feito. O Cris, enfim, me impressionava mais uma vez; conseguia, quando menos esperava dele, algo brilhante; mais um coelho da cartola. Com um fio de voz, perguntei:
- E como se chama este, Cris?
Ele parou para pensar. Olhei-o de cima; ele não sabia que nome dar à obra, o que me deixava na posição de questionar qualquer nome que ele inventasse. Iria dizer que ele não tinha entendido sua própria arte; que ele não havia pensado em nada ao fazê-la. Iria dizer que aquilo, apesar de ser bonito e de ter algumas características acadêmicas, não expressava nada, não traduzia nada, não passava de um monte de riscos pintados, e, enfim, acabaria com ele. Pensei tudo isso em menos de cinco segundos, tempo suficiente para que ele me dissesse o nome do desenho:
- Vou chamá-lo de “Pôr-do-sol no mar.”
Dei uma segunda olhada no papel. Estava lá o mar, o sol, o reflexo do sol, tudo implícito. Você olhava o desenho e era como se, de repente, a chuva parasse de cair sobre a quadra da escola e, em seu lugar, um grená, maravilhoso e cubista pôr-do-sol despontasse no horizonte. Engoli com custo o deboche que iria fazer, e disse, entregando-lhe o papel e me afastando:
- Muito bem, Cristiano; tá muito bonito.
Tentei não demonstrar meu abatimento; tentei fingir que aquilo tudo não me empolgava nem me despertava tanto interesse. Mas me roí por dentro, mesmo não querendo que ele percebesse. O quadro do Cris ficou na minha mente por muito tempo; sempre que fechava os olhos, via um maravilhoso pôr do sol em retas e círculos; e o fato é que não me lembro de, na minha vida, ter me sentido tão insignificante como naquele dia.
Ti Bianchini,13 de fevereiro de 2002
PS: Muito poucos me leram em "O Garoto que Ninguém Entendia"; é um livro infanto-juvenil que escrevi em 1996 e que ainda não foi publicado. Quem sabe, um dia? Talvez eu vá colocando os seus capítulos neste blog; vou pensar...
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