O torcedor acordou de mal-humor. Dia
de final de Copa do Mundo, noventa milhões de brasileiros em ação, no que, para
ele, não passava de uma tola e derradeira visão de otimismo. Ele, porém, sabia:
não tinha jeito, era ilusão relutar contra a verdade: o Brasil não tinha time
capaz de bater a Itália. De nada adiantaria sua torcida; era inútil despejar suas
energias sobre uma causa perdida.
Talvez por isso não tenha almoçado
àquele dia. Talvez também fosse por isso que não havia saído para sua velha
sinuquinha, com os companheiros de bar. Sabia que, se saísse de casa, estaria
seriamente sujeito a comentar sobre o inevitável assunto: o jogo no México, e
aí era capaz de sair confusão.
Mas por que se recusava a acreditar
no sucesso de um Brasil recheado de craques, ou “feras”, por assim dizer? Sua
tese era simples: como confiar numa equipe que possui um goleiro do Fluminense,
um volante que joga de zagueiro, um Pelé míope e um Tostão com sérios problemas
na vista? Como acreditar que este novelo de problemas pudesse fazer frente a
uma Itália de Riva, Boninsegna, e um retrospecto belíssimo contra os alemães?
Não, não dava prá torcer; ele não se iludiria como os outros tantos sofredores
que compunham, heroicamente, a “corrente prá frente”. O Brasil perderia, essa
era a dura verdade, e ele apenas torceria para que a derrota fosse honrada.
Eram vinte dias contados do mês de
junho. Nosso solitário derrotista pensa alto antes do jogo, assim como que para
justificar o pecado mortal de desconfiar da seleção: “É claro que vou torcer
para o Brasil, mas a supremacia italiana é incontestável”. E depois, para
solidificar ainda mais sua tese: “O tempo há de me dar razão”. A partida começa
no Azteca, com mornidade; a Itália
esperando o poderoso ataque brasileiro. “Dizem tanto do Jairzinho, mas
esquecem-se de que seu marcador, hoje, chama-se Fachetti. A Itália tem equipe
portentosa, vindo, daí, toda a certeza de que ficaremos com a prata”.
Dezoito minutos. Rivellino faz
jogada pela esquerda, dando, sem querer, de bico, prô meio da área. O velho
Pelé lança-se sobre a pelota; ela bate em sua testa e entra sem defesa: Brasil
na frente.
Como que incrédulo, nosso sofredor
hesita na desculpa: “A Itália só está dando graça ao espetáculo; daqui a pouco,
as coisas mudam.” - e, novamente, nem gesto apaziguador - “Deus queira que
continue assim; mas não nos enganemos: não dá. A verdade é dura, mas temos de
aceitá-la”.
A torcida mexicana pula e grita. Mas
prá quê? Se todos sabem o desfecho... mesmo que ninguém queira admitir. Ele
não: apesar de torcer, sabia que era impossível, e apenas pouparia sofrimento.
Trinta e sete minutos. A defesa falha (como ele próprio previra) e Boninsegna
confirma todas as expectativas. “É só a ponta de um iceberg”, diz ele, com ares
de “viu, não te disse?” e “sabia disso desde o início”. E espera,
tranqüilamente, a virada da Azurra. O Brasil se perde. A Itália massacra. Cada
chute cruzado, cada falta cometida, cada lateral, tudo é motivo para pulos e
explosões de nervos. Já nem ele sabe prá quem está torcendo, se para a Pátria
ou para a Profecia; se para Gérson ou Burgnich. O Brasil dá o troco; estamos no
segundo tempo. Nosso incerto torcedor brasileiro alterna gritos e apelos
aparentemente paradoxais, mas que revelam toda a agonia existente na tênue
linha que liga a razão à emoção: “Vai, Jairzinho! Não deixa passar, Mazzola!
Vai, Clodoaldo! Pega essa, Albertosi!”. Assim o empasse se segue, até os vinte
minutos.
O camisa oito do Brasil é Gérson. E
Gérson arrisca o chute. Ora, logo ele, o encarregado dos lançamentos do time,
que mesmo no São Paulo não é lá de sair, por aí, disparando tiros certeiros.
Pois a bola sai precisa, preciosa, perfeita. E o México todo se junta à
“corrente”.
Assim, como quem acorda de um sonho,
nosso personagem vê todos os seus prognósticos caírem por terra, junto com a
bola, que cai quicando dentro do gol italiano. Depois da surpresa, a revolta: a
injustiça de ver a Itália, de Rivera, De Sisti e Domenghini, der decapitada por
um Gérson. Não, isso não ocorreria; Deus não permitiria este grande ocaso.
O fim trágico não demora muito.
Jairzinho faz sem querer o terceiro. Nosso ex-torcedor, agora já descaradamente
azul-e-branco, não acredita no resultado. A Itália... perdendo... como
poderia... Eufórico, ofegante, grita, xinga, gesticula com os jogadores, como
se estes lhe fossem subordinados: “Corre! Chuta! Marca! Passa! Faz!!!” Mas não
dá: o lateral Carlos Alberto decreta o final do massacre. O relógio marca: só
faltam três minutos.
Encolhido, atrás da poltrona, de
costas para a TV, nosso antigo amigo nem vê o alemão erguer o braço e encerrar
o espetáculo. Antes, prefere ir à cozinha, refrescar-se com a cerveja que,
ironicamente, comprara para comemorar o tri da Canarinho. “Mas era
impossível...”, sussurra, confidente, para a garrafa.
Toma um banho. Desiste da espiada
que ia dar pela janela, na desesperada ânsia de ver, entre a multidão que canta
e brinca, um único semblante de tristeza. Vai dormir, portanto, de cabeça
quente, lamentando o fato que ocorrera há pouco, causador da sua triste
angústia: seu time agora é campeão do Mundo.
Tiago Bianchini Fidalgo - 06.03.1.996.
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