sábado, 10 de maio de 2014

Quando se perde


            O torcedor acordou de mal-humor. Dia de final de Copa do Mundo, noventa milhões de brasileiros em ação, no que, para ele, não passava de uma tola e derradeira visão de otimismo. Ele, porém, sabia: não tinha jeito, era ilusão relutar contra a verdade: o Brasil não tinha time capaz de bater a Itália. De nada adiantaria sua torcida; era inútil despejar suas energias sobre uma causa perdida.
            Talvez por isso não tenha almoçado àquele dia. Talvez também fosse por isso que não havia saído para sua velha sinuquinha, com os companheiros de bar. Sabia que, se saísse de casa, estaria seriamente sujeito a comentar sobre o inevitável assunto: o jogo no México, e aí era capaz de sair confusão.
            Mas por que se recusava a acreditar no sucesso de um Brasil recheado de craques, ou “feras”, por assim dizer? Sua tese era simples: como confiar numa equipe que possui um goleiro do Fluminense, um volante que joga de zagueiro, um Pelé míope e um Tostão com sérios problemas na vista? Como acreditar que este novelo de problemas pudesse fazer frente a uma Itália de Riva, Boninsegna, e um retrospecto belíssimo contra os alemães? Não, não dava prá torcer; ele não se iludiria como os outros tantos sofredores que compunham, heroicamente, a “corrente prá frente”. O Brasil perderia, essa era a dura verdade, e ele apenas torceria para que a derrota fosse honrada.
            Eram vinte dias contados do mês de junho. Nosso solitário derrotista pensa alto antes do jogo, assim como que para justificar o pecado mortal de desconfiar da seleção: “É claro que vou torcer para o Brasil, mas a supremacia italiana é incontestável”. E depois, para solidificar ainda mais sua tese: “O tempo há de me dar razão”. A partida começa no Azteca, com mornidade;  a Itália esperando o poderoso ataque brasileiro. “Dizem tanto do Jairzinho, mas esquecem-se de que seu marcador, hoje, chama-se Fachetti. A Itália tem equipe portentosa, vindo, daí, toda a certeza de que ficaremos com a prata”.
            Dezoito minutos. Rivellino faz jogada pela esquerda, dando, sem querer, de bico, prô meio da área. O velho Pelé lança-se sobre a pelota; ela bate em sua testa e entra sem defesa: Brasil na frente.
            Como que incrédulo, nosso sofredor hesita na desculpa: “A Itália só está dando graça ao espetáculo; daqui a pouco, as coisas mudam.” - e, novamente, nem gesto apaziguador - “Deus queira que continue assim; mas não nos enganemos: não dá. A verdade é dura, mas temos de aceitá-la”.
            A torcida mexicana pula e grita. Mas prá quê? Se todos sabem o desfecho... mesmo que ninguém queira admitir. Ele não: apesar de torcer, sabia que era impossível, e apenas pouparia sofrimento. Trinta e sete minutos. A defesa falha (como ele próprio previra) e Boninsegna confirma todas as expectativas. “É só a ponta de um iceberg”, diz ele, com ares de “viu, não te disse?” e “sabia disso desde o início”. E espera, tranqüilamente, a virada da Azurra. O Brasil se perde. A Itália massacra. Cada chute cruzado, cada falta cometida, cada lateral, tudo é motivo para pulos e explosões de nervos. Já nem ele sabe prá quem está torcendo, se para a Pátria ou para a Profecia; se para Gérson ou Burgnich. O Brasil dá o troco; estamos no segundo tempo. Nosso incerto torcedor brasileiro alterna gritos e apelos aparentemente paradoxais, mas que revelam toda a agonia existente na tênue linha que liga a razão à emoção: “Vai, Jairzinho! Não deixa passar, Mazzola! Vai, Clodoaldo! Pega essa, Albertosi!”. Assim o empasse se segue, até os vinte minutos.
            O camisa oito do Brasil é Gérson. E Gérson arrisca o chute. Ora, logo ele, o encarregado dos lançamentos do time, que mesmo no São Paulo não é lá de sair, por aí, disparando tiros certeiros. Pois a bola sai precisa, preciosa, perfeita. E o México todo se junta à “corrente”.
            Assim, como quem acorda de um sonho, nosso personagem vê todos os seus prognósticos caírem por terra, junto com a bola, que cai quicando dentro do gol italiano. Depois da surpresa, a revolta: a injustiça de ver a Itália, de Rivera, De Sisti e Domenghini, der decapitada por um Gérson. Não, isso não ocorreria; Deus não permitiria este grande ocaso.
            O fim trágico não demora muito. Jairzinho faz sem querer o terceiro. Nosso ex-torcedor, agora já descaradamente azul-e-branco, não acredita no resultado. A Itália... perdendo... como poderia... Eufórico, ofegante, grita, xinga, gesticula com os jogadores, como se estes lhe fossem subordinados: “Corre! Chuta! Marca! Passa! Faz!!!” Mas não dá: o lateral Carlos Alberto decreta o final do massacre. O relógio marca: só faltam três minutos.
            Encolhido, atrás da poltrona, de costas para a TV, nosso antigo amigo nem vê o alemão erguer o braço e encerrar o espetáculo. Antes, prefere ir à cozinha, refrescar-se com a cerveja que, ironicamente, comprara para comemorar o tri da Canarinho. “Mas era impossível...”, sussurra, confidente, para a garrafa.
            Toma um banho. Desiste da espiada que ia dar pela janela, na desesperada ânsia de ver, entre a multidão que canta e brinca, um único semblante de tristeza. Vai dormir, portanto, de cabeça quente, lamentando o fato que ocorrera há pouco, causador da sua triste angústia: seu time agora é campeão do Mundo.


Tiago Bianchini Fidalgo - 06.03.1.996.


Nenhum comentário:

Postar um comentário