quarta-feira, 16 de abril de 2014

Tostão

            Jogador moderno mesmo era o Tostão.
           Tente lembrar: Brasil e Itália, o lance do quarto gol: Clodoaldo recebe a bola no campo de defesa, entorta três italianos como se fosse um centroavante, toca para Rivelino, na ala esquerda (mas que naquele tempo ninguém chamava de “ala”), que passa rasteiro e rápido para Jairzinho, na ponta esquerda. Ele vai prá cima do marcador, toca para Pelé, quase na meia-lua, e então vem o lance mágico: o Rei vira de lado e rola a bola para o nada, para a lateral da área, onde não tem ninguém, nem brasileiro nem italiano, no enquadramento da câmera. E eis que surge, do nada, um Carlos Alberto a 120 por hora, na avenida Itália, para encher o pé de primeira, para chutar como, pena, não se chuta mais hoje em dia, para guardar no canto direito de Albertosi.
            Tá, mas e daí? Onde entra o Tostão nessa história?
           Entra na parte mais genial da jogada: é ele quem faz sinal para que Pelé, de costas para o lance, possa rolar a bola mágica. É de Tostão a visão magnífica de um Carlos Alberto entrando, livre, para fuzilar a meta azzurra. É dele, em suma, a autoria intelectual do improvável passe, para o nada, para o Capita, para o Tri.
           Tostão tinha algo que poucos jogadores de futebol tiveram: a maturidade precoce. Pelé era um prodígio aos vinte anos; Tostão era um veterano aos vinte e dois. Encerrou a carreira aos vinte e sete anos, idade em que muitos estão começando a aprender a jogar bola. Tinha a movimentação de um jogador dos anos oitenta, aliada a uma inteligência e visão de jogo que só havia quando o futebol era algo pobre, apaixonado e amador. Tostão, sim, era imprevisível, até porque não dava nunca a impressão de que iria demolir uma defesa. E assim Tostão demoliu defesas e mais defesas, em todos os campeonatos mineiros em que foi artilheiro, no final da década de sessenta.
         Tostão foi, talvez, o primeiro centroavante brasileiro que voltou para o meio campo, a armar jogadas. Pelé fazia isso, mas tinha como referência lá na frente um Coutinho, um Pagão, um Toninho. Tostão foi o ponteiro que veio dialogar com os meias, muitas vezes saindo para abrir espaços para os que vinham de trás. O primeiro overlapping que Coutinho viu foi certamente na semifinal contra o Uruguai, aquele mesmo Clodoaldo invadindo a área celeste no espaço vazio aberto por Tostão.
            Tostão chutava com as duas, cabeceava bem antes do acidente no olho, e era, a despeito do semblante calculista e cerebral, extremamente aguerrido. Visitava os flancos do campo qual um Robinho, um Ronaldo Gaúcho, um “atacante flutuante” - mas viveu numa época em que não existiam essas bobagens, frases e locuções criadas para definir o feijão-com-arroz. Tostão usava mais a estratégia do que a explosão. Tostão não driblava um beque; destroçava um sistema defensivo. Um zagueiro podia ser entortado por um Pelé. Mas devia ser bem mais humilhante ser enganado por um Tostão.
            E aquele time dos sonhos, a seleção do Tri, valeu-se da sua imprevisibilidade, seja na jogada aguda na linha de fundo, contra o Perú, seja no memorável “vem dançar comigo” em cima dos ingleses.

            Aquele time dos cinco camisas dez corria por Jairzinho, encantava por Pelé, pensava por Gérson e explodia por Rivelino. E funcionava por Tostão.

Tiago Bianchini - 2002

Nenhum comentário:

Postar um comentário