quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Crônica de Natal



                        Era um velho como qualquer outro; eu simplesmente joguei a moeda perto do chapéu, sem nem ao menos mudar o trote. Me olhou com um agradecimento sincero no fundo dos olhos. Tinha feridas nas pernas, pelo que não andava; ficava sentado ao pé da escadaria da igreja, na busca de uma ou outra moeda, de um ou outro fiel. Era perto de uma da tarde; e lembro-me bem que, às cinco e meia, quando já voltava do meu destino, o velho me olhou e me lembrou, e disse: “Obrigado”. Percebi que me falava da moeda, e notei que era a única que angariara durante todo o dia, a despeito das missas que estavam cheias por causa do natal. Era domingo, véspera de natal.
                        Não sei por que estou contando esta história; não é uma história alegre. Mas nem todas as histórias de natal têm que ser, afinal de contas. Sei que senti uma tristeza profunda de ver que ninguém tinha se comovido com o velho pobre, apesar de muita gente ter ido comemorar o aniversário do Cristo. Senti muita pena, principalmente por ver que Deus, no dia maior do seu maior Filho, houvera reservado tal presente ao velho, que nascera para sofrer no mundo de hipócritas que este próprio Deus criara. E, ao mesmo tempo, senti também uma profunda alegria, por ter a certeza de que, de certa maneira, fui o mensageiro de um pouco mais de esperança ao velho; que, por causa do meu real, ele poderia comer alguma coisa no natal. E, ao fim das contas, agradeceria também a Deus, pela moeda que um môço lhe jogou, pela tarde. Fui para casa e me senti feliz.
                        Mas chegou o natal, e eu, que não sou lá muito de sair de casa, me vi obrigado a alguns passeios, para saudar os poucos que me queriam bem. Passei pelo velho, que estava deitado; joguei-lhe outra moeda, desta vez dentro da aba do chapéu. Olhei para o povo que, apressado para a missa, pulava as pernas estendidas do velho com certa repugna. “Hipócritas”, refleti. Lá o velho permaneceu, às portas da casa de Deus, mas sem ninguém a desejar sua presença lá dentro.
                        Os cumprimentos foram breves e logo tomei novamente o rumo de casa. Desta vez não havia o velho: havia um corpo envolto num saco preto; alguns funcionários da prefeitura por perto. Vieram retirar o corpo de um mendigo que morrera de fome durante a noite, ali mesmo. O padre logo mandou chamá-los; não ficava bem um velho morto na porta da igreja, justo no dia do natal. Olhei o chapéu do velho, ainda no chão, e não vi a minha moeda. Olhei para a igreja. Pensei no padre que jamais se preocupara com o velho, em vida; lembrei do povo que pulava o velho com nojo. Pensei em Deus, que tirara a vida do velho, vida que lhe deu sem porquê. Me peguei dizendo: “Hipócrita”; e até hoje não descobri se eu falava do padre, do povo, de Deus ou de mim.
                        Foi um natal triste; não porque o velho fosse meu amigo, nem tampouco conhecido; e pode ser até que ele tenha gastado meu real em uma dose de aguardente; não importa. Rezei ao velho, à noite, e novamente me surpreendi pensando qual a vantagem de orar a Deus pelo velho; o mesmo Deus que lhe tirava a vida. Mas acabei por crer que era, certamente, o mesmo Deus que lhe abriria as portas de Sua verdadeira casa. Nem todos os natais são alegres, como nem todas as histórias o são. A verdadeira importância, na vida, está em descobrir o sentido da vida nestas pequenas passagens, que, por si só, não são tristes nem alegres: nós é que lhes extraímos uma ou outra lição.



Tiago Bianchini Fidalgo, 26 de dezembro, 2.000.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Mandela

Morreu Mandela.
Mouro mandatário dos miseráveis.
Marco da milícia dos magros,
Dos maltrapilhos.
Dos mutilados.
Dos mortais.
Dos muitos que merecem a mudança,
Que morrem por mesquinharias
Nas mãos de malditos.
Miocárdios machucados,
Mentes em mordaças,
Máscaras de melanina.
Morreu Mandela.
Mito, Mago, mais-que-humano.
Merecedor das maiores mazelas,
E das menores máculas.
Por mostrar-nos que o mundo é mais
O mundo é macro.
O mestre é maior que a morte.
Morada das minhas 
Melhores memórias:
O Mundo é mudo.
Morreu Mandela.
Tiago Bianchini - 05.12.2013

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Coruja
















Feito em Pastel-seco, 2013.

Ladainha

O meu triste pranto,
de tanto chorar,
faz amar a vida
querida; cantar,
dar o ar do meu canto,
meu santo da dor;
na cor de seu manto
eu canto o amor.

Não sei se a quero
- espero que sim -
assim o meu dia
seria sem fim.
A mim ela ama,
me chama, me adora;
agora ela acalma
minh'alma que chora.

Tiago Bianchini - 1996

À Soberana Deusa da Noite que Brilha nos Céus A Lua

Do céu nos olha a Senhora Lua
Clareando a noite, esperando o dia,
Tirando das nuvens sua vã magia
Que cai sobre o rio, a casa, a rua.

Do céu, soberana, permanece nua
Minguante, crescente, cheia, vazia;
Alegre, que dança na doce folia;
Do céu, soberana, nos olha e flutua.

Que faz, neste céu, moradia Tua,
Ó Lua, perfeita paz e calmaria,
Que em ti se incendeia, perfaz, perpetua?

Não deixe que exista, nesta noite fria,
Um sopro de dor, que em Ti situa
Os restos noturnos da minha poesia.

Tiago Bianchini - 1995

Sem Nome

Coube aos meus lábios dizer-te, um dia,
Com rachos n’alma, a palavra vil:
“Adeus”; coube a mim a despedida fria
Na fria palavra, no olhar frio...

Estou bem, contudo; e melhor seria
Se, na nossa história, houvesse um vazio
Ao invés da dor e da agonia
Maior e mais forte que já alguém sentiu.

É assim a vida: uma breve poesia
É assim a vida, afinal: dores mil
Que invadem o peito, e à boca guia

A palavra – “Adeus!” – de quem jamais partiu:
Faz-se como um mar, de água bravia,
Que jamais recusa a candura d’um rio.

Tiago Bianchini - 1998

O Chute


75 Metros: “Olha lá; quem pegou na bola é o Rei: Preste atenção que aí vem coisa boa.”
          
73 Metros: O Rei levanta a cabeça e olha fundo. “Não tem ninguém lá, cadê o Tostão? Está do seu lado. Cadê o Jair? Não sei...”
           
72 Metros: Não há ninguém para o combate. Mesmo assim, o Rei prepara o pé de apoio. “Mas vai lançar prá quem? Não tem ninguém... a não ser que ele vá fintar alguém... É, é isso: na hora de chutar, ele vai acabar aprontando alguma. Afinal, ele sempre fez isso conosco.”
            
70 Metros: O Rei ignora o campo de ataque vazio, e do grande círculo manda a bola. “Mas ele está maluco?! Essa eu não entendi! Prá quem foi este lançamento, hein, “seu Rei”? Será que o Saldanha é que estava certo, e que o Negrão está mesmo bem ruinzinho das vistas? Pois, a não ser que eu esteja louco ou cego, ele não lançou prá ninguém; simplesmente se livrou da bola...”
            
60 Metros: A bola, já sozinha, permanece subindo. “Este Pelé deve mesmo estar gagá. Deve ter lançado esta bola prô torcedor, na arquibancada. Mas é muita falta de responsabilidade, oras!”
            
50 Metros: a bola ainda sobe insistentemente; o tiro foi mesmo acima das proporções de força. “Ele deve estar querendo jogar a bola fora do estádio. Por que não deixou que, se era para dar um bicão prá cima, o Rivelino daria muito mais forte?”
            
40 Metros: Os olhos se voltam para o goleiro Victor. Está quase fora da grande área e observa de mais perto a sandice do dito Rei. A bola começa a descer. “Zagalo, Zagalo, PÕE O DARIO, ZAGALO!!!”
            
30 Metros: A bola continua a descer. Um estranho arrepio domina o arqueiro da Tchecoslováquia; um estranho pressentimento de que é melhor ele voltar logo para suas metas, antes que alguma coisa aconteça. “Se o Dadá estivesse aí, quem sabe ele poderia até tentar pegar este lançamento absurdo do velhinho. Dentro dos vestiários, é claro.”
            
20 Metros: A bola desce perigosamente. É difícil crer no que já parece ter passado na mente do Rei. O estádio inteiro olha para o mesmo ponto no espaço. O arqueiro corre, tenta chegar antes que a bola complete seu perigosíssimo percurso. “Meu Deus... Ela está indo para o...”
            
10 metros: A bola já ultrapassa, mesmo no ar, o goleiro Victor. Ele continua a correr. Por que duvidara do Rei?! Todos sabem do que Ele é capaz, o que tinha que fazer fora da área... “Vai, Vai... Não posso acreditar...”
            
1 metro: O destino parece certo. O México todo empurra com os olhos a bola, talvez com a intenção de não deixar este gol ser perdido. “Vai ser gol... vai ser gol... Gol...”
            
10 Centímetros: Inexplicavelmente, e por alguns centímetros, parece que o gol não vai acontecer. Milhões de olhos tentam desesperadamente empurrar a bola para dentro das redes, num esforço inútil. Victor também torce. Pode estar torcendo, patrioticamente, para o tiro de meta; todavia pode ter o diabólico desejo de ver, também, a pelota entrar. Se ela entrar, merece comemoração, mesmo que seja contra seu país. “Deixa eu assoprar: (Fuuuuu... Fuuuuu...)”

A bola sai. E ao mesmo tempo entra. Entra para a História, como um sonho de três segundos que nunca chegaria a se concretizar. Entra para a nossa memória como um Paraíso mágico em torno de uma bola, como se esta fosse de ouro, o metal mais nobre, para Rei tão mais nobre ainda. Mas sai pela linha de fundo, num doloroso erro de cálculo de dois, ou talvez três centímetros. Todos se calam:
           
“.... .... .... .... .... .... .... .... .... .... ....”.







Tiago Bianchini, 30.01.1998 - feat. Pelé, 30.06.1970

Teu:

A noite vem; a tarde some;
E cá estou eu a dizer teu nome
Em prosa, em verso, na perfeita simetria
Da alegria;

E diante do teu olhar, neste retrato,
Neste papel que me faz feliz de fato,
Te beijo inteira, sonhando, na noite fria
E vazia.

“Algum dia eu sei que terei você...”
Que tolice! Já tenho-te em meu viver,
Neste meu mundo, onde tudo é fantasia
E poesia,

Mas espero ainda te ter ao meu alcance,
E te abraçar, beijar, te amar, neste romance,
Que equilibra a noite, em suma e vadia
Sinfonia.

O meu desejo por ti é tão imenso;
É tão maravilhosamente grande, que nem penso
Que exista amor maior no Mundo que tardia
Nossa folia.

Amor, és tudo, és a aurora, anjo meu,
És a sereia que faz crer meu peito ateu
Nestas loucuras, que me encanto em tua magia
Neste dia.

És, enfim, a musa que inspira a pena
Deste escritor, que de amor te envenena;
És minha lua e meu Sol, que me irradia
Calmaria.

Tiago Bianchini - 1997

Soneto "Eu"

És o Sol que clareia minha estrada;
És o odor que perfuma meu caminho;
És a alma que não me deixa sozinho,
És tudo, enfim: és minha amada.

Sem ti, lhe juro, não há nada
Que me alegre no nosso Mundo mesquinho;
Pois és meu tudo; és meu Amo, és meu ninho;
És, pois, meu anjo; minha eterna namorada.

Jamais te traio; não contesto teu amor;
Apenas peço prá que aceite esta flor,
E que ela diga a você o quanto te chamo;

E que me leve até você, para que vejas
Que sou um tolo, esperando que tu sejas
Minha rainha, a dama que tanto amo.

Tiago Bianchini - 1995

Alma


A alma é a noite, como a noite é bela,
E veste de negro o vão firmamento;
A noite é a graça, a garça singela,
Que voa e que vaga, e que beija o vento.

A noite é a alma, e a alma, a alma,
É o sonho dourado da vã poesia;
E é poesia o pranto que acalma,
Como é sentimento a garça que pia.

A alma é a garça; a garça é o sonho,
O sonho dourado da vida que cala;
A alma é a vida, o amor que proponho
Do fundo do berço onde a vida me embala.

A alma é o sonho, o sonho é o dia,
E o dia é a Lua, que a noite consola;
E a Lua é  aquela que, na noite fria,
Lhe rouba a magia, e lhe traz a aurora.


A Lua é a Lua, a Lua, a Lua,
Que brilha a maré, e que faz uivar
O lobo, na noite pela qual flutua
E brilha, e queima, e paira no ar.

É a alma, enfim, a vida perdida
Nas páginas brancas que escondem o trauma
De ter, entre o sonho, a Lua e a vida,
A noite, a garça, o vento e a alma.

Tiago Bianchini - 1997

Desenhos - Twiggy e Warren Buffett

Twiggy

Warren Buffett

Dois desenhos feitos a lápis, por encomenda, em 2013.


segunda-feira, 25 de novembro de 2013

O Maravilhoso Drible em Linha Reta

            A bola não escolhe o caminho a fazer. É simplesmente empurrada de um lado a outro por pés e cabeças pensantes, como um gigantesco bilhar. E é aí que reside toda a mágica do futebol; a habilidade mental de conduzir a bola pelo campo, como um bailarino a conduzir a dama pelo palco.
            O Bailarino, pois, está no palco, juntamente com a dama, que de lá jamais saiu. Concedendo a honra desta maravilhosa dança a outros companheiros, vai dando prosseguimento ao balé. Mas a dama, lembrem-se, jamais decide o que fazer; nada faz sozinha, depende sempre do toque sutil do Bailarino para se propor a este ou àquele lado.
            Já na segunda metade de um ardoroso espetáculo, alguém lança a bola ao Bailarino. E lá vai ela, em sua magnífica e milimétrica linha reta, que muitos poucos ousam desafiar. O Bailarino corre, corre, parece que não vai conseguir chegar. Para piorar, o goleiro decide ir buscá-la, mesmo longe de suas metas. O Bailarino impõe respeito; se pegar na bola, é gol certo. O goleiro deve chegar antes, já que um toque, por mais sutil que seja, pode causar a queda de um Império de onze camisas azuis. Tomando de uma vez por todas a pelota em seu poder, o goleiro impediria o Grande Bailarino de desviar a bola. E, como todos sabem, se ela não for decididamente tocada, ela não é capaz de feito algum.
            A bola vem. Vem o goleiro, vem também o Bailarino. Parece não haver favoritismo para parte alguma; os três deverão chegar rigorosamente juntos ao ponto estratégico, e aí, quem desviar primeiro a dama, ficará à vontade para com ela fazer o que bem entender.
            O goleiro nem mais pensa em tomar o controle da bola; apenas tem a única e sórdida intenção de travar as pernas do Bailarino. Ora, se o Bailarino não puder se manter em pé, não poderá tocar a bola. E, se ela não for tocada, nada irá acontecer.
            A bola vem, na sua reta incontestável. O goleiro vai desesperadamente aos pés do Bailarino, antes que dele saia o toque fatal. O Bailarino deixa, inexplicavelmente a dama passar, ilesa, sem toque mágico algum. O goleiro também passa batido, sem nem ao menos enxergar o que está para acontecer. O Bailarino faz a curva, retoma a bola e chuta.
            O drible em linha reta chegou a ser cômico; Ninguém, em sã consciência, seria capaz de supor que a bola, que sozinha não é capaz de nada, fosse capaz de tão histórico feito. Ante ao Bailarino, ela chega a ganhar vida; chega a fazer coisas que jamais se ousou imaginar possível. Sim, ela o entende como ninguém; ela chega a jogar junto com Ele.
            E agora, que Ele já a tem de volta em seu poder, sem ninguém por perto para atrapalhar, com o gol aberto, que poderá fazer? Todos sabem, mas estão por demais boquiabertos para dele esperar alguma façanha. Procuram todos relembrar o feito de segundos atrás, tentando entender o que não seria entendido por nenhuma mente normal através dos séculos.
            Mas o Bailarino chuta. A bola passa triscando como um fósforo o canto direito do arco Celeste. Todos lamentam, riem, continuam boquiabertos. Diferentes manifestações definem as diferentes formas de se admirar a arte. Mas, com o tempo, vem a pergunta intrigante e lógica:
            - Por que a bola, caprichosamente, preferiu não invadir as redes e fechar com chave de ouro o ato mais importante da Grande Ópera, para desconsolo de todos?
            Simplesmente porque ela, a bola, esta desalmada que insiste em brincar com nossos sentimentos mais fulgorosos, não decide o caminho a seguir; não escolhe sequer para que lado quer rolar. Faz a alegria de uns e a tristeza de outros. Não fosse assim, talvez ninguém tomaria conhecimento do lance, ao invés de marcar a máxima de um Grande Gênio:

            A bola não precisa sequer ser tocada para surpreender o adversário; a bola apenas tem a noção de que o Bailarino dela faz o que bem quer, às vezes sem precisar desviá-la, dando um fantástico e inesquecível drible em linha reta nos pobres adversários.



Tiago Bianchini - 15.10.1997

As Flores


Flores, que desabrocham,
Como a vida alva a emergir,
E em botões que, ao surgir,
Com o tempo, desacocham;

Como vos aproveitares
De tão adoráveis criadas:
Ofertando às amadas,
Enfeitando vossos lares.

Dando à mestra, com ternura,
Despetalando-te inteira,
Colhendo-te da terra dura

Que só com ti nos presenteia;
Só em ti vemos doçura:
És sangue de nossa veia.

   *  *  *

Flores, que do mal nascem
Quando a vida expirar
Sobre esta, vêm pousar,
Como se a morte saudassem.

Mórbido, o corpo velado
Pelo olhar lúgubre e tolo,
Tem, num tétrico consolo,
Vossa presença a seu lado.

E no murchar dos amores,
Esse incenso imortal
Que enfeitam nossas dores;

Essa lembrança fatal
Vem de ti, ó belas flores
De perfume funeral.

Tiago Bianchini - 1996

Ateliê


Meu amor é tinta diluída,
Nas saudades de uma pincelada;
E diante da tela calada,
Onde eu pinto esta minha vida,

Em luz-e-sombra, em cor esquecida
No cinza-claro, onde está traçada
Em tinta-a-óleo, sem dizer nada,
A minha Monalisa perdida;

És tu o brilho alvo do céu
Que guia sempre este meu pincel
Por sobre o pano, que esta dor corta;

És a mulher que me dá cor bela,
Enchendo de vida esta tela
Da minha vã natureza-morta.

Tiago Bianchini - 1996

Queria ser...


Queria ser, ao invés deste amador,
Apenas um ser, glorioso, a enfeitar
Os teus cabelos, e ver teu olhar brilhar;
Queria eu, apenas, ser uma flor.

E então, dar-te-ia o meu amor,
Mas tanto amor, no momento de aflorar,
E em sua justa homenagem, ao murchar,
Não perderia um só suspiro deste odor.

Mas não sou nada - sou apenas um mortal
Que te coloca como deusa em pedestal,
Para adorar-te, aos teus pés angelicais;

Mas não te escondo o meu desejo, na saudade,
De apenas ser, com toda a minha humildade,
Aquela flor que te perfuma; nada mais.

Tiago Bianchini - 1996

As Borboletas

            Eu era pequenino. Ainda me lembro do nosso sítio, belo e promissor, onde às vezes eu passava férias esporádicas. Existia, um pouco prá lá do pasto, um riozinho, cercado de árvores, que divisava a propriedade, e na outra margem, já em terras vizinhas, uma planície, onde se via as mais diversas qualidades de flores. Era conhecida como o “Campo das Borboletas”, dado ao impressionante número de borboletinhas que pairavam por sobre as flores, embelezando o que já era lindo, dando-nos um espetáculo fascinante. Bom era sentar à margem do rio e ficar admirando de longe o balé, sem nem ver o tempo passar.
            No alto do morro, um pouco prá lá do campo, uma casa enorme, onde morava o dono da propriedade. Fazendeiro rico, que tivera a felicidade de ter, no próprio quintal, tais borboletas, que davam um colorido todo especial ao seu recanto.
            A gente ficava observando, do lado de cá do rio, e imaginando como este homem devia ser feliz, por acordar todos os dias com vista tão maravilhosa. Era um agraciado, na certa; tirara a sorte grande: nada neste Mundo poderia pagar tamanho prazer.
            Foi mais ou menos quando comecei a andar com os filhos do caseiro, que tomava conta do nosso sítio. Passei a acordar cedo, para ir com eles até as casas, levando o leite que era tirado das nossas vacas prá ser vendido. Os filhos do caseiro, por já terem entrado na mansão algumas vezes, vivam me contando sobre o escritório do senhor:
            - Precisa ver, que coisa linda. Tem um montão de borboletas, na parede, uma maravilha de se ver!...
            E devia ser, mesmo... Ficava imaginando como alguém pode ter tanto na vida: borboletas no quintal e também em casa. Sonhava com o dia em que pudesse conhecer tal lugar, que devia ser o próprio paraíso.
Mas acontece que, um dia, fui escolhido para ir entregar um litro na fazenda das borboletas. Bati na porta, com pouca afobação; a empregada veio me atender:
            - Espera aí na sala, que eu vou pegar o dinheiro. É mil, né?
            - Sim, senhora.
            E lá fiquei, na salona bonita da mansão, aguardando a volta da mulher. Foi quando escapei os olhos até a porta do escritório, que alguém havia deixado entreaberta. Fui me aproximando, vagarosamente, e enfiei a cabeça para dentro, para poder xeretar melhor o aposento. Só então vi os quadros, na parede: centenas de borboletas, grandes, pequenas, azuis, amarelas, todas presas por um alfinete na camurça e penduradas na parede com uma moldura. Assim, como se fossem pintadas, sem bater as asas nem nada, sem perambular pelas flores; mortas, enfim.
            Deixei-me invadir pela cólera cega de quem não entende que graça tem em matar um bichinho tão bonito, e belo justamente pela sua simplicidade de voar por sobre os campos floridos, singelamente; de quem não entende como alguém pode achar bonito um quadro não-pintado, senão por Deus, com a esperança de que vivessem sempre soltas, vivas, vívidas; de quem não consegue entender como alguém, com toda aquela riqueza, pudesse ser tão infeliz.
            Recebi o dinheiro e fui me embora. Desde então, nunca mais fui sentar-me à beira do riacho, para apreciar a rotineira paisagem de alegria e cores. Talvez porque já não mais via alegria, talvez por que já não via cores. Mas, certamente, porque já não havia mais graça.

Tiago Bianchini - 14.05.1997

Sonho de Maio

Um dia me verás com os olhos d'água
transbordando de tristeza minha mágoa
prá que jamais ela volte a me assustar;
e neste dia calmo e delirante
terás em mim o seu melhor amante,
o seu amado, o seu amigo; o homem certo prá te amar.
Sim; me terás inteiro em tua fina
e perfumada pele de menina
cuja saudade já não existe mais;
ora, que se hoje de saudades canto,
amanhã enxugarei teu pranto,
prá que não voltes a chorar jamais.

Tola sina, vaga de certeza;
se não encontro hoje em tua frieza
um só motivo que me faça desistir
de afagar os teus cabelos morenos,
e me ajoelhar ante os pés pequenos;
o que me resta apenas é prosseguir
a clamar pelo amor que eu sei que existe,
e se hoje, ao dizer não, me deixas triste,
não me entristece mais porque te adoro;
e diante de tão fútil negação
perceberás que não adianta dizer não
se mesmo sabes que dentro de ti 'inda moro.

Talvez por isso seja eu tão renitente
em alcançar de alguma forma o beijo ardente
que dos teus lábios me parecem seduzir;
para que mesmo depois de o Sol se pôr
possa provar com carinho o teu sabor,
prá que a doçura em mim possa refletir
o teu olhar, que por mim irá brilhar,
e mais e mais, quando em meus olhos se inspirar,
para que a Lua, nesta madrugada quente,
venha roubar desta tua luz maravilhosa
com reverência, prá que brilhe, majestosa,
iluminando o nosso céu eternamente.

E se, por ora, idolatrando-te destarte,
Lhe paire a dúvida de que sempre irei amar-te,
não cegue os olhos com injúria tão cruel:
apenas deixe transparecer na retina
que és minha musa, minha inspiração divina;
és minha aura; és minh'alma; és meu céu.


Tiago Bianchini, 1997

Poema do Eterno Amor

Sinta-me,
Como jamais sentiu ninguém nesta tua vida;
E toque-me,
Sem o pudor que se dispensa a um amigo.
Beije-me,
Sem se importar com a censura aturdida;
E leve-me;
Prá onde for, onde quiser; irei contigo.

Veja:
Chove lá fora, cai a chuva, molha a Terra;
Mas veja:
A Lua brilha e traz de volta a esperança.
Cresça:
Eu quero ser o homem que em teu corpo encerra;
Creia:
E quero nos teus braços me sentir criança.

Brilhe
Com teu olhar cheio de luz, o meu caminho;
Vista
Com tua aura de ilusão, o meu destino.
Ouça;
Cantam os pássaros a saudade em cada ninho;
E Saiba
Que és a rainha do meu reino pequenino.


Tiago Bianchini - 1996

A Flauta

Epílogo 1: uma breve impressão

Vi uma abelha entre os canteiros floridos
Sugando o mel dos jasmineiros gotejantes;
Ao céu, voavam colombinas sibilantes:
Eis que a menina traz-me novos coloridos.

Cabelos negros, e soltos, e compridos,
Sorriso aberto, olhos pequenos e brilhantes;
Tinha uma flauta entre os lábios vacilantes,
Da qual soprava agudos longos e sentidos.

Que queres, pobre anjo em forma de menina,
A saltitar e ressoar o teu flautim?
Ou pensas tu que a flauta é mais doce e fina

Do que o mel que a abelha suga do jasmim?
Ora, é Deus quem canta pela colombina;
Deixai que elas assobiem no jardim!




Epílogo 2: Outra breve impressão


Trazes uma flauta, a alegrar meu dia,
A inspirar-me a leve e sutil melodia,
A encantar-me mais que mil liras de Orfeus.

Menina da flauta, quão doce é tua sina!
A soprar a brisa casual e fina
Afinando notas sopradas por Deus;

Trazes uma flauta, a te beijar os lábios,
Doce instrumento dos deuses e dos sábios
Sabe os segredos dos suspiros teus;

E ao tocar a flauta, tocas minha alma;
E teu soprar leve me envolve e me acalma
A soprar-me a vida; a levar-me aos céus.


Epílogo 3: A Flauta




Doce;
            Que fosse a vida bela como o teu semblante,
            E a todo instante dir-te-ia, doce fada,
            O quanto és amada por este tolo infante.
            Tão radiante és tu, musa adorada.
            Que nada houvesse, no meu escuro penar,
            Que, ao soprar agudo da tua boca leve,
            Tão breve fosse iluminado, a brilhar
            Qual teu olhar, casto e puro como a neve.

Leve;
            Qual deve ser, enfim, o mais lírico canto,
            Qual acalanto pode me trazer o sonho
            Do teu risonho murmurar, com tal encanto
            Vívido e santo – dize-me, e eu o componho!
            Ah, quão tristonho e tosco é este coração!
            Quisera a mão de Deus lhe dar amôres tais...
            Matinais beijos em teus lábios, ou, então,
            Rosa em botão, a enfeitar-te ainda mais!...

            Ah! Minha vida, quando muito, é tão vazia!...
            Não há poesia para quem de amor padece:
            E apenas cresce-me o desejo de que, um dia,
            Me sejas guia, Anjo Moreno, e ouvis minha prece
            E que eu pudesse trocar a dor da tua falta
            Pela mais bela pauta que jamais compôs-se;
            E que me fosse assim, soprada, qual uma flauta
            Qual uma incauta e delgada flauta doce. 

Leve e Doce.



Tiago Bianchini Fidalgo
2005