terça-feira, 26 de novembro de 2013

O Chute


75 Metros: “Olha lá; quem pegou na bola é o Rei: Preste atenção que aí vem coisa boa.”
          
73 Metros: O Rei levanta a cabeça e olha fundo. “Não tem ninguém lá, cadê o Tostão? Está do seu lado. Cadê o Jair? Não sei...”
           
72 Metros: Não há ninguém para o combate. Mesmo assim, o Rei prepara o pé de apoio. “Mas vai lançar prá quem? Não tem ninguém... a não ser que ele vá fintar alguém... É, é isso: na hora de chutar, ele vai acabar aprontando alguma. Afinal, ele sempre fez isso conosco.”
            
70 Metros: O Rei ignora o campo de ataque vazio, e do grande círculo manda a bola. “Mas ele está maluco?! Essa eu não entendi! Prá quem foi este lançamento, hein, “seu Rei”? Será que o Saldanha é que estava certo, e que o Negrão está mesmo bem ruinzinho das vistas? Pois, a não ser que eu esteja louco ou cego, ele não lançou prá ninguém; simplesmente se livrou da bola...”
            
60 Metros: A bola, já sozinha, permanece subindo. “Este Pelé deve mesmo estar gagá. Deve ter lançado esta bola prô torcedor, na arquibancada. Mas é muita falta de responsabilidade, oras!”
            
50 Metros: a bola ainda sobe insistentemente; o tiro foi mesmo acima das proporções de força. “Ele deve estar querendo jogar a bola fora do estádio. Por que não deixou que, se era para dar um bicão prá cima, o Rivelino daria muito mais forte?”
            
40 Metros: Os olhos se voltam para o goleiro Victor. Está quase fora da grande área e observa de mais perto a sandice do dito Rei. A bola começa a descer. “Zagalo, Zagalo, PÕE O DARIO, ZAGALO!!!”
            
30 Metros: A bola continua a descer. Um estranho arrepio domina o arqueiro da Tchecoslováquia; um estranho pressentimento de que é melhor ele voltar logo para suas metas, antes que alguma coisa aconteça. “Se o Dadá estivesse aí, quem sabe ele poderia até tentar pegar este lançamento absurdo do velhinho. Dentro dos vestiários, é claro.”
            
20 Metros: A bola desce perigosamente. É difícil crer no que já parece ter passado na mente do Rei. O estádio inteiro olha para o mesmo ponto no espaço. O arqueiro corre, tenta chegar antes que a bola complete seu perigosíssimo percurso. “Meu Deus... Ela está indo para o...”
            
10 metros: A bola já ultrapassa, mesmo no ar, o goleiro Victor. Ele continua a correr. Por que duvidara do Rei?! Todos sabem do que Ele é capaz, o que tinha que fazer fora da área... “Vai, Vai... Não posso acreditar...”
            
1 metro: O destino parece certo. O México todo empurra com os olhos a bola, talvez com a intenção de não deixar este gol ser perdido. “Vai ser gol... vai ser gol... Gol...”
            
10 Centímetros: Inexplicavelmente, e por alguns centímetros, parece que o gol não vai acontecer. Milhões de olhos tentam desesperadamente empurrar a bola para dentro das redes, num esforço inútil. Victor também torce. Pode estar torcendo, patrioticamente, para o tiro de meta; todavia pode ter o diabólico desejo de ver, também, a pelota entrar. Se ela entrar, merece comemoração, mesmo que seja contra seu país. “Deixa eu assoprar: (Fuuuuu... Fuuuuu...)”

A bola sai. E ao mesmo tempo entra. Entra para a História, como um sonho de três segundos que nunca chegaria a se concretizar. Entra para a nossa memória como um Paraíso mágico em torno de uma bola, como se esta fosse de ouro, o metal mais nobre, para Rei tão mais nobre ainda. Mas sai pela linha de fundo, num doloroso erro de cálculo de dois, ou talvez três centímetros. Todos se calam:
           
“.... .... .... .... .... .... .... .... .... .... ....”.







Tiago Bianchini, 30.01.1998 - feat. Pelé, 30.06.1970

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