Não
sei quem, certa vez, disse (não morro de amores pelos filósofos) que calar é a
melhor defesa dos culpados. Estava eu em plena aula de contraponto musical,
matéria que aprecio, apesar de ser, no máximo, um aluno esforçado e pouco mais
que medíocre. O professor havia distribuído as provas que havíamos feito uma
semana antes, já corrigidas. Eu ainda estava tão perplexo quanto mudo quando
ele, ao aproximar-se da minha mesa, pediu-me a folha de volta. Entreguei-lha
num gesto quase que inconsciente.
- Me dê uma
razão para eu não te deixar de exame – disse-me o professor, com a prova nas
mãos.
A pergunta me
pegou de surpresa; de fato não parecia lúcido aos meus olhos uma nota dentro da
média. Eu poderia mesmo argumentar que a prova continha muito poucos erros; a
bem da verdade, apenas um, em um ponto nevrálgico da composição. A questão,
nesse caso, não era a quantidade, mas a gravidade do corte; uma pessoa pode se
ralar inteira em uma queda, sair cheia de hematomas, quebrar os dois braços e
as duas pernas, e, mesmo assim, sair com vida; ou pode levar um tiro no
coração, o que teria sido apenas uma ferida – mas fatal.
- Estou
esperando – tornou o mestre. A sala em silêncio na expectativa da minha defesa.
Alguns, bem sei, tomariam minhas dores, se pudessem; mas era algo que somente
eu poderia contornar. Jogar-me ao chão e simular um enfarto não era a melhor
saída, em primeiro lugar porque o professor não acreditaria em mim e em segundo
lugar porque eu poderia me contundir de verdade na queda. Ademais, isso não me
daria uma revisão da prova nem uma nota maior. Havia a alternativa pusilânime
da clemência, entre lágrimas, em nome dos meus filhos; havia a alternativa vil
da ameaça, entre injúrias, em nome dos filhos dele. Também poderia optar pelo corajoso
enfrentamento ou o desprezível suborno. O professor estava impaciente – muito
mais que eu – e batia com os dedos no verso da folha – uma folha límpida, com
um exercício brilhante, quase perfeito, exceto por uma única notação em
vermelho, que fazia ruir toda a minha vida acadêmica.
- Bem, chega
de conversa. Assine sua prova. O exame será na próxima segunda. – disse o
professor, do alto do seu olhar de superioridade.
Ele me odiava.
Desde quando o questionei, a ele e a seus métodos, ele deve ter jurado a si
mesmo que eu não passaria na sua matéria. Fosse eu o Sol, e a sua prova, uma
peneira, ainda assim eu não teria a menor chance. Agora eu era o humilhado, o
quase bom, o quase aprovado; o que bateu na trave mas pecou pela incompetência.
Sentia que o exame a vir seria algo impossível de superar – e, não obstante,
sentia que o exame era algo do qual não parecia-me possível escapar. Zilhões de
coisas passaram-me pela cabeça naquele instante – inclusive centenas de
maneiras de corrigir aquela falha minúscula no exercício, inclusive dezenas de
sinfonias completas e inéditas, inclusive o esboço de um novíssimo tratado de
composição. A idéia do enfarto voltava a surgir diante de mim e, juro, era a
que mais me interessava.
Foi quando,
assim de chofre, vi uma nota no papel que não era da minha caligrafia.
Uma nota,
feita por uma mão que não era a minha, com uma caneta que não era a minha, ao
lado do erro que me tinha feito ruir. Provavelmente, era do próprio professor,
na tentativa de arrumar o erro da peça, seja para mostrar-me como deveria ser
feito, seja para poder aproveitar o exercicio que, já o disse, era muito bom.
Ele devia ter colocado ali só para me humilhar; só para mostrar como era
simples ter acertado, só para me dizer: “como você não viu este erro grotesco?”.
Sim; esta era a sua hora de glória; a hora em que ele começaria um enorme e
sarcástico discurso de como o aluno que se acreditava o melhor do mundo
conseguiu reprovar por um errinho infantil.
O sorriso
começava-lhe a sair pela boca. Antes que ele continuasse, porém, eu intervi:
- Professor...
não sei se o senhor viu, mas tem a resolução do erro aqui do lado, grafado em
azul.
- Não seja
ridículo! Fui eu quem escreveu!
- O senhor me
desculpe, mas está em azul. Eu digo que tenho certeza de que fui eu quem o
corrigiu antes de entregar a prova. Se fosse o senhor quem tivesse feito, por
que usou a cor azul, a mesma que eu usei para fazer a prova? Todo o resto das
suas anotações está em vermelho...
Ele
empalideceu. Sabia que, se eu levasse às últimas consequências, poderia
denunciá-lo à diretoria por fraude – e eu o faria. Afinal, se ficasse
comprovado que aquela letra era mesmo dele, seria a evidência cabal de que ele
adulterou a minha prova. A única saída, para o seu impasse, seria admitir que a
letra era minha – mas, neste caso, ele teria que me aprovar com louvor, pois o
exercício ficaria correto. Ele começou a suar frio; havia sido pêgo em
flagrante, tendo a sala inteira como testemunha, no seu próprio plano de
vingança.
- Então,
professor, o que me diz? Acho que o senhor deveria reavaliar esta prova...
Ele tomou a
prova nas mãos novamente. Trêmula, a folha mal se sustentava sob seus dedos.
Sabia que não tinha escolha, mas o pior era ter que se humilhar perante dezenas
de alunos que queriam vê-lo arruinado. Todas as hipóteses devem ter passado
pela cabeça dele naquele instante: o suborno, a ameaça, a clemência, o
enfrentamento. Por fim, decidiu-se pela mais plausível: atirou-se no chão e
simulou um enfarto.
Como eu ia
dizendo, não sou muito afeito aos filósofos. Mas às vezes eles até que têm lá a
sua razão.
Tiago Bianchini – 24 de agosto,
2.004.
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