sábado, 23 de novembro de 2013

PROVA DE COMPOSIÇÃO



            Não sei quem, certa vez, disse (não morro de amores pelos filósofos) que calar é a melhor defesa dos culpados. Estava eu em plena aula de contraponto musical, matéria que aprecio, apesar de ser, no máximo, um aluno esforçado e pouco mais que medíocre. O professor havia distribuído as provas que havíamos feito uma semana antes, já corrigidas. Eu ainda estava tão perplexo quanto mudo quando ele, ao aproximar-se da minha mesa, pediu-me a folha de volta. Entreguei-lha num gesto quase que inconsciente.
- Me dê uma razão para eu não te deixar de exame – disse-me o professor, com a prova nas mãos.
A pergunta me pegou de surpresa; de fato não parecia lúcido aos meus olhos uma nota dentro da média. Eu poderia mesmo argumentar que a prova continha muito poucos erros; a bem da verdade, apenas um, em um ponto nevrálgico da composição. A questão, nesse caso, não era a quantidade, mas a gravidade do corte; uma pessoa pode se ralar inteira em uma queda, sair cheia de hematomas, quebrar os dois braços e as duas pernas, e, mesmo assim, sair com vida; ou pode levar um tiro no coração, o que teria sido apenas uma ferida – mas fatal.
- Estou esperando – tornou o mestre. A sala em silêncio na expectativa da minha defesa. Alguns, bem sei, tomariam minhas dores, se pudessem; mas era algo que somente eu poderia contornar. Jogar-me ao chão e simular um enfarto não era a melhor saída, em primeiro lugar porque o professor não acreditaria em mim e em segundo lugar porque eu poderia me contundir de verdade na queda. Ademais, isso não me daria uma revisão da prova nem uma nota maior. Havia a alternativa pusilânime da clemência, entre lágrimas, em nome dos meus filhos; havia a alternativa vil da ameaça, entre injúrias, em nome dos filhos dele. Também poderia optar pelo corajoso enfrentamento ou o desprezível suborno. O professor estava impaciente – muito mais que eu – e batia com os dedos no verso da folha – uma folha límpida, com um exercício brilhante, quase perfeito, exceto por uma única notação em vermelho, que fazia ruir toda a minha vida acadêmica.
- Bem, chega de conversa. Assine sua prova. O exame será na próxima segunda. – disse o professor, do alto do seu olhar de superioridade.
Ele me odiava. Desde quando o questionei, a ele e a seus métodos, ele deve ter jurado a si mesmo que eu não passaria na sua matéria. Fosse eu o Sol, e a sua prova, uma peneira, ainda assim eu não teria a menor chance. Agora eu era o humilhado, o quase bom, o quase aprovado; o que bateu na trave mas pecou pela incompetência. Sentia que o exame a vir seria algo impossível de superar – e, não obstante, sentia que o exame era algo do qual não parecia-me possível escapar. Zilhões de coisas passaram-me pela cabeça naquele instante – inclusive centenas de maneiras de corrigir aquela falha minúscula no exercício, inclusive dezenas de sinfonias completas e inéditas, inclusive o esboço de um novíssimo tratado de composição. A idéia do enfarto voltava a surgir diante de mim e, juro, era a que mais me interessava.
Foi quando, assim de chofre, vi uma nota no papel que não era da minha caligrafia.
Uma nota, feita por uma mão que não era a minha, com uma caneta que não era a minha, ao lado do erro que me tinha feito ruir. Provavelmente, era do próprio professor, na tentativa de arrumar o erro da peça, seja para mostrar-me como deveria ser feito, seja para poder aproveitar o exercicio que, já o disse, era muito bom. Ele devia ter colocado ali só para me humilhar; só para mostrar como era simples ter acertado, só para me dizer: “como você não viu este erro grotesco?”. Sim; esta era a sua hora de glória; a hora em que ele começaria um enorme e sarcástico discurso de como o aluno que se acreditava o melhor do mundo conseguiu reprovar por um errinho infantil.
O sorriso começava-lhe a sair pela boca. Antes que ele continuasse, porém, eu intervi:
- Professor... não sei se o senhor viu, mas tem a resolução do erro aqui do lado, grafado em azul.
- Não seja ridículo! Fui eu quem escreveu!
- O senhor me desculpe, mas está em azul. Eu digo que tenho certeza de que fui eu quem o corrigiu antes de entregar a prova. Se fosse o senhor quem tivesse feito, por que usou a cor azul, a mesma que eu usei para fazer a prova? Todo o resto das suas anotações está em vermelho...
Ele empalideceu. Sabia que, se eu levasse às últimas consequências, poderia denunciá-lo à diretoria por fraude – e eu o faria. Afinal, se ficasse comprovado que aquela letra era mesmo dele, seria a evidência cabal de que ele adulterou a minha prova. A única saída, para o seu impasse, seria admitir que a letra era minha – mas, neste caso, ele teria que me aprovar com louvor, pois o exercício ficaria correto. Ele começou a suar frio; havia sido pêgo em flagrante, tendo a sala inteira como testemunha, no seu próprio plano de vingança.
- Então, professor, o que me diz? Acho que o senhor deveria reavaliar esta prova...
Ele tomou a prova nas mãos novamente. Trêmula, a folha mal se sustentava sob seus dedos. Sabia que não tinha escolha, mas o pior era ter que se humilhar perante dezenas de alunos que queriam vê-lo arruinado. Todas as hipóteses devem ter passado pela cabeça dele naquele instante: o suborno, a ameaça, a clemência, o enfrentamento. Por fim, decidiu-se pela mais plausível: atirou-se no chão e simulou um enfarto.
Como eu ia dizendo, não sou muito afeito aos filósofos. Mas às vezes eles até que têm lá a sua razão.


Tiago Bianchini – 24 de agosto, 2.004.

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