domingo, 24 de novembro de 2013

7 de abril

Depois daquele dia, Simão parecia mesmo muito perturbado. Ao chegar em casa, viu aquela espécie de pavor contido que saltava dos olhos da sua esposa e da sua filha. Tinha sido chamado pelos soldados – malditos romanos! – para ajudar a carregar a cruz de um condenado.
- Tudo bem? – perguntou a esposa.
            Não respondeu. Foi até o quintal e serviu-se de água.
            - Vá descansar, Simão. Amanhã é dia santo e teremos o dia cheio.
            Foi esticar o corpo na rede da varanda. Pediu uma cerveja para a filha; tinha deixado uma garrafa no freezer, desde manhãzinha. A mulher sentou-se ao seu lado:
            - Estava pensando em fazer peixada amanhã. A gente podia tentar vender umas peixadas no almoço; nesses dias ninguém gosta de cozinhar mesmo. Pode ser que dê prá levantar uns trocados.
            Permaneceu em silêncio. A mulher tentou disfarçar certa naturalidade, mas acabou não aguentando:
            - Simão, fala comigo!... Diz! Aquele preso te disse alguma coisa? Ele te ameaçou, te maltratou?
            - Não diga besteira, Clara! – suspirou finalmente – Aquele pobre coitado mal conseguia se sustentar de pé... Os romanos fazem as bobagens e depois quem fica com a pior parte somos nós. Se não tivessem batido tanto naquele rapaz, ele conseguiria carregar sua cruz igual aos outros.
            - Ah, então foi a cruz!... Olha só, seus ombros! Todos vermelhos, inchados! Você está sangrando, Simão!
            - Não; o sangue é do preso... Tive que carregar os dois: a cruz e ele.
            A mulher ficou apreensiva. Depois, para fingir não estar preocupada, levantou-se e foi falando enquanto punha a roupa no tanque:
            - Ah, mas que judiação! Onde já se viu, surrar o pobre daquele jeito! Antes matasse, de uma vez!... A Sarinha da pastelaria disse que eles estavam com raiva do moço por causa de uma confusão no Templo, outro dia. Eu não sei não. Esses romanos só servem prá por medo no povo! A gente já nem sabe mais em quem confiar; se nos bandidos do morro ou nos soldados. Eu ouvi Dona Jurema, do cabeleireiro, dizer que tem mais deles espalhados pela cidade. Você acredita só que outro dia...
            - Clara, me deixa em paz!
            A mulher resignou-se. Pegou a filha pelo braço, puxando-a para fora da sala.
            - Vem, Ametista. Deixa o teu pai descansar. Vai brincar lá fora e não venha fazer barulho, que ele tá nervoso...
            Simão ficou pensativo por várias horas. Esqueceu-se do jogo que ia passar na TV; a lembrança daquele olhar não lhe saía da cabeça. E se aquele homem estivesse falando sério... E se ele fosse mesmo alguém muito importante, um Rei, como se dizia... Tudo bem, que aparecem loucos dizendo que são Deus todos os dias, em toda esquina, mas e se um dia algum deles estiver certo, estiver falando a verdade?
            A cerveja acabou. Estava quente – ele precisava desmontar aquele freezer, qualquer dia desses, para descobrir o problema. Onde já se viu, em pleno Sol do Deserto e a geladeira não funcionava...
            Acabou pegando no sono ali mesmo, poucos minutos antes da mulher trazer a filha prá dentro por causa do temporal que vinha vindo.
           
            *                                  *                                  *                                  *

            Acordou no dia seguinte com uma baita dor nas costas. Foi só o corpo esfriar, e a dor causada pelo excesso de peso do dia anterior veio com tudo. Resolveu ir bater uma sinuquinha com os colegas, prá passar o sábado.
            - Você viu só a tempestade desta noite? Pensei que ia destelhar toda a casa! A Joana ficou em desespero; se encolheu num canto e ficou rezando, dizendo que era castigo, que tinha sido sacrilégio crucificar gente assim tão perto da Páscoa... – contava um companheiro de jogo.
            Mas Simão ainda estava matutando. Os colegas perceberam a mudança, mas ninguém se atreveu a perguntar nada.
            Depois foi à feira; precisava comprar umas coisinhas prá mulher fazer a tal da peixada. Desceu o morro, entrou e saiu de alguns botequins, estava escolhendo umas frutas nas barraquinhas: “Olha o damasco!!! Quem vai querer? Mocinha bonita não paga mas também não leva! Pega, minha senhora, vê só que qualidade!” “Uvinhas fresquinhas! Uvinhas frescas prá páscoa! Vamos levando, minha gente!” Escolheu algumas romãs, um pouco de amendoim e umas azeitonas; deteve-se um pouco na banca dos peixes.
            De repente, tumulto nas barracas. Um homem havia passado a mão num jarro de vinho e se desembestava a correr no meio das bancas. Trombou com Simão, gritou, xingou, mas foi pêgo. Em questão de segundos – sabe como esse pessoal do morro é ligeiro – estava formada a roda: “Quem roubou a minha barraca?” “Foi ele, seu moço!” “Cadê o desgraçado?!” “Foi um daqueles lá” “Quem foi que mexeu nos jarros?” “Ninguém viu, ninguém viu” “Vaza daqui, antes que a boca fique quente pro teu lado!” “Olha a maçã, minha senhora, leva que tá fresquinha!”
            Ninguém sabia quem tinha roubado o quê. Só deu prá ver, no meio da confusão, alguém gritar:
            - Ei, aquele não é o Barrabás, que tava preso no Galiléia I ?
            - É ele! Nossa!... Não disseram que o Galiléia I era de segurança máxima?
            - Presta atenção! Esses caras vivem melhor do que a gente! Têm até celular lá dentro! Deve ter dado um trocado prá guarda, e deixaram ele sair.
            - Foi ele que roubou o vinho?
            Nisso Barrabás já se havia levantado:
            - Aê, mano... Eu tô com gente minha lá no meu barraco, certo?!... Tá tendo pagode, tô levando uns goró pro pessoal bebê, firmeza?... Deixa eu passá senão vai ficá piqueno prá vocês, certo?...
            A povarada foi dando passagem. Esses bandidos, quando saem da cadeia, parecem que ficam piores. Simão ficou lá no chão; ombros doloridos, roupa amarrotada. Alguém perguntou:
            - E esse, quem é?
            - Não sei... será que é da mesma quadrilha?
            - Não sei não...
            Aí alguém reconheceu:
            - Ah, eu vi esse homem! Eu vi esse homem!!! Ele tava carregando uma cruz ontem mesmo! Só pode ser marginal igual os outros!
            - Ah, eu sabia! Essa cara de santo, condenado à crucificação! Olha o ombro dele, todo inchado!!! Vai dizer que não era você?!
            - Nã-não!! Não é isso... Eu só estava...
            - Sem-vergonha! Descarado!!! Roubando vinho de um cidadão trabalhador! Mal escapou de uma pena, já tá cometendo crimes!!!
            - Essa raça, tinha que matar tudo!!! Bando de desgraçados!!!
            - É por causa de gente que nem você que o morro tem fama de violento!
            - Agora você vai ver o que é bom!
            - Vamos dar uma lição nele!
            Simão estava perplexo demais para esboçar qualquer reação. Na sua mente corriam milhões de coisas prá lá e prá cá. A dor nas costas. O peso da cruz. A cerveja quente. O Barrabás trombando nele. O feriado, A tempestade. O maldito soldado Romano. No meio de tudo, aquele olhar, aquele rosto ensanguentado que parecia lhe dizer milhões de coisas, sem que abrisse a boca. Aquele olhar, aquela força estranha que, de repente, explicava tudo.
            Foi quando lembrou dos peixes e da peixada e da Clara que estava esperando que a multidão, enfurecida, começou a atirar as pedras.

            

Tiago Bianchini, 2004

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