Depois
daquele dia, Simão parecia mesmo muito perturbado. Ao chegar em casa, viu
aquela espécie de pavor contido que saltava dos olhos da sua esposa e da sua
filha. Tinha sido chamado pelos soldados – malditos romanos! – para ajudar a
carregar a cruz de um condenado.
-
Tudo bem? – perguntou a esposa.
Não respondeu. Foi até o quintal e
serviu-se de água.
- Vá descansar, Simão. Amanhã é dia
santo e teremos o dia cheio.
Foi esticar o corpo na rede da
varanda. Pediu uma cerveja para a filha; tinha deixado uma garrafa no freezer,
desde manhãzinha. A mulher sentou-se ao seu lado:
- Estava pensando em fazer peixada
amanhã. A gente podia tentar vender umas peixadas no almoço; nesses dias
ninguém gosta de cozinhar mesmo. Pode ser que dê prá levantar uns trocados.
Permaneceu em silêncio. A mulher
tentou disfarçar certa naturalidade, mas acabou não aguentando:
- Simão, fala comigo!... Diz! Aquele
preso te disse alguma coisa? Ele te ameaçou, te maltratou?
- Não diga besteira, Clara! –
suspirou finalmente – Aquele pobre coitado mal conseguia se sustentar de pé...
Os romanos fazem as bobagens e depois quem fica com a pior parte somos nós. Se
não tivessem batido tanto naquele rapaz, ele conseguiria carregar sua cruz
igual aos outros.
- Ah, então foi a cruz!... Olha só,
seus ombros! Todos vermelhos, inchados! Você está sangrando, Simão!
- Não; o sangue é do preso... Tive
que carregar os dois: a cruz e ele.
A mulher ficou apreensiva. Depois,
para fingir não estar preocupada, levantou-se e foi falando enquanto punha a
roupa no tanque:
- Ah, mas que judiação! Onde já se
viu, surrar o pobre daquele jeito! Antes matasse, de uma vez!... A Sarinha da
pastelaria disse que eles estavam com raiva do moço por causa de uma confusão
no Templo, outro dia. Eu não sei não. Esses romanos só servem prá por medo no
povo! A gente já nem sabe mais em quem confiar; se nos bandidos do morro ou nos
soldados. Eu ouvi Dona Jurema, do cabeleireiro, dizer que tem mais deles
espalhados pela cidade. Você acredita só que outro dia...
- Clara, me deixa em paz!
A mulher resignou-se. Pegou a filha
pelo braço, puxando-a para fora da sala.
- Vem, Ametista. Deixa o teu pai
descansar. Vai brincar lá fora e não venha fazer barulho, que ele tá nervoso...
Simão ficou pensativo por várias
horas. Esqueceu-se do jogo que ia passar na TV; a lembrança daquele olhar não
lhe saía da cabeça. E se aquele homem estivesse falando sério... E se ele fosse
mesmo alguém muito importante, um Rei, como se dizia... Tudo bem, que aparecem
loucos dizendo que são Deus todos os dias, em toda esquina, mas e se um dia
algum deles estiver certo, estiver falando a verdade?
A cerveja acabou. Estava quente –
ele precisava desmontar aquele freezer, qualquer dia desses, para descobrir o
problema. Onde já se viu, em pleno Sol do Deserto e a geladeira não
funcionava...
Acabou pegando no sono ali mesmo,
poucos minutos antes da mulher trazer a filha prá dentro por causa do temporal
que vinha vindo.
* * * *
Acordou no dia seguinte com uma
baita dor nas costas. Foi só o corpo esfriar, e a dor causada pelo excesso de
peso do dia anterior veio com tudo. Resolveu ir bater uma sinuquinha com os
colegas, prá passar o sábado.
- Você viu só a tempestade desta
noite? Pensei que ia destelhar toda a casa! A Joana ficou em desespero; se
encolheu num canto e ficou rezando, dizendo que era castigo, que tinha sido
sacrilégio crucificar gente assim tão perto da Páscoa... – contava um
companheiro de jogo.
Mas Simão ainda estava matutando. Os
colegas perceberam a mudança, mas ninguém se atreveu a perguntar nada.
Depois foi à feira; precisava
comprar umas coisinhas prá mulher fazer a tal da peixada. Desceu o morro,
entrou e saiu de alguns botequins, estava escolhendo umas frutas nas
barraquinhas: “Olha o damasco!!! Quem vai querer? Mocinha bonita não paga mas
também não leva! Pega, minha senhora, vê só que qualidade!” “Uvinhas
fresquinhas! Uvinhas frescas prá páscoa! Vamos levando, minha gente!” Escolheu
algumas romãs, um pouco de amendoim e umas azeitonas; deteve-se um pouco na
banca dos peixes.
De repente, tumulto nas barracas. Um
homem havia passado a mão num jarro de vinho e se desembestava a correr no meio
das bancas. Trombou com Simão, gritou, xingou, mas foi pêgo. Em questão de
segundos – sabe como esse pessoal do morro é ligeiro – estava formada a roda:
“Quem roubou a minha barraca?” “Foi ele, seu moço!” “Cadê o desgraçado?!” “Foi
um daqueles lá” “Quem foi que mexeu nos jarros?” “Ninguém viu, ninguém viu”
“Vaza daqui, antes que a boca fique quente pro teu lado!” “Olha a maçã, minha
senhora, leva que tá fresquinha!”
Ninguém sabia quem tinha roubado o
quê. Só deu prá ver, no meio da confusão, alguém gritar:
- Ei, aquele não é o Barrabás, que
tava preso no Galiléia I ?
- É ele! Nossa!... Não disseram que
o Galiléia I era de segurança máxima?
- Presta atenção! Esses caras vivem
melhor do que a gente! Têm até celular lá dentro! Deve ter dado um trocado prá
guarda, e deixaram ele sair.
- Foi ele que roubou o vinho?
Nisso Barrabás já se havia
levantado:
- Aê, mano... Eu tô com gente minha lá no meu
barraco, certo?!... Tá tendo pagode, tô levando uns goró pro pessoal bebê,
firmeza?... Deixa eu passá senão vai ficá piqueno prá vocês, certo?...
A povarada foi dando passagem. Esses
bandidos, quando saem da cadeia, parecem que ficam piores. Simão ficou lá no
chão; ombros doloridos, roupa amarrotada. Alguém perguntou:
- E esse, quem é?
- Não sei... será que é da mesma
quadrilha?
- Não sei não...
Aí alguém reconheceu:
- Ah, eu vi esse homem! Eu vi esse
homem!!! Ele tava carregando uma cruz ontem mesmo! Só pode ser marginal igual
os outros!
- Ah, eu sabia! Essa cara de santo,
condenado à crucificação! Olha o ombro dele, todo inchado!!! Vai dizer que não
era você?!
- Nã-não!! Não é isso... Eu só
estava...
- Sem-vergonha! Descarado!!! Roubando
vinho de um cidadão trabalhador! Mal escapou de uma pena, já tá cometendo
crimes!!!
- Essa raça, tinha que matar tudo!!!
Bando de desgraçados!!!
- É por causa de gente que nem você
que o morro tem fama de violento!
- Agora você vai ver o que é bom!
- Vamos dar uma lição nele!
Simão estava perplexo demais para
esboçar qualquer reação. Na sua mente corriam milhões de coisas prá lá e prá
cá. A dor nas costas. O peso da cruz. A cerveja quente. O Barrabás trombando
nele. O feriado, A tempestade. O maldito soldado Romano. No meio de tudo,
aquele olhar, aquele rosto ensanguentado que parecia lhe dizer milhões de
coisas, sem que abrisse a boca. Aquele olhar, aquela força estranha que, de
repente, explicava tudo.
Foi quando lembrou dos peixes e da
peixada e da Clara que estava esperando que a multidão, enfurecida, começou a
atirar as pedras.
Tiago Bianchini, 2004
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