domingo, 24 de novembro de 2013

Anatomia

I- A Descrição

Escravos da solidão, os lábios meus:
Que, dos teus, nem sequer guardam a frescura...
E ora repetem, incansáveis: “adeus”...

Diabos que são, meus olhos, à procura
Das tuas meninas, envoltas em celeste
Azul, e de lembrar tanto me tortura.

Ausente coração, pulsação agreste
De um sedento e árido, que, de ti,
‘Inda espera o teu coração, que me deste.

Serpente da ilusão, qual deusa tupi:
A esperança que tenho em ter, meu Deus,
Você; olhos, coração, lábios, aqui.



II- A anomalia

Revolta-me esta extrema incompetência
Que a ciência tem, de não encontrar
A salutar explicação a esta demência
À indecência desta vontade de “amar”

O que me insulta não é esta febre solta
Que à nossa volta se espalha como cigano
E, sem engano, nos mata; o que me revolta
É esta escolta de vírus no corpo humano.

O que me deixa louco, na verdade,
É esta saudade do sofrer que há no enfermo,
Sem meio termo, é este morrer, e esta vontade

De ter piedade, este distúrbio indefinível
E inconcebível, e deplorável, que é o de sermos
Apaixonados e ermos, e felizes; e isto é possível.

  
III- Os Sentidos


Está calor. Calor. A madrugada sua.
E seu suor abranda a minha febre
E me emudece a boca; e lembra a boca tua.

Está ventando. Ventando. Derruba o meu casebre
O vento-lobo, a assoprar; manda a palha aos céus;
E deixa-me indefeso ao amor teu, qual uma lebre.

Está escuro. Escuro. Cegaram-se os olhos de Deus.
Tal é o meu rumo: sombrio, turvo, sem Lua;
Negro como os negros olhos teus.

Está tarde. Tarde. A solidão está nua.
E se oferece a mim, como uma cortesã,
E instala-se entre a minha vida e a vida tua.

Está claro. Claro. Brota-me a manhã
Do teu sorriso límpido de Monalisa, entre o ateu
Suplício e a promiscuidade pagã.

Está morno. Morno. Meu coração é um réu
Na mornidade do limbo, sem pena nem perdão:
E o sangue aguarda, morno, o veredicto do amor teu.

Está seco. Seco. Vivo onde já não

Repousa a paz ou se hospeda a alegria;
E mesmo o não-viver já me seria uma bênção.

Está bem. Bem. Bem mais do que deveria
E o sentimento é de que nada muda: nada
Apenas algumas células se movem, à revelia.

Está triste. Triste. Chora a malfadada
Lembrança, sob o crepúsculo; e dos lábios teus
Já não me lembra; e torna então a madrugada.


Tiago Bianchini - 2003

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