Eu era pequenino. Ainda me lembro do
nosso sítio, belo e promissor, onde às vezes eu passava férias esporádicas. Existia,
um pouco prá lá do pasto, um riozinho, cercado de árvores, que divisava a
propriedade, e na outra margem, já em terras vizinhas, uma planície, onde se
via as mais diversas qualidades de flores. Era conhecida como o “Campo das
Borboletas”, dado ao impressionante número de borboletinhas que pairavam por
sobre as flores, embelezando o que já era lindo, dando-nos um espetáculo
fascinante. Bom era sentar à margem do rio e ficar admirando de longe o balé,
sem nem ver o tempo passar.
No alto do morro, um pouco prá lá do
campo, uma casa enorme, onde morava o dono da propriedade. Fazendeiro rico, que
tivera a felicidade de ter, no próprio quintal, tais borboletas, que davam um
colorido todo especial ao seu recanto.
A gente ficava observando, do lado
de cá do rio, e imaginando como este homem devia ser feliz, por acordar todos
os dias com vista tão maravilhosa. Era um agraciado, na certa; tirara a sorte
grande: nada neste Mundo poderia pagar tamanho prazer.
Foi mais ou menos quando comecei a
andar com os filhos do caseiro, que tomava conta do nosso sítio. Passei a
acordar cedo, para ir com eles até as casas, levando o leite que era tirado das
nossas vacas prá ser vendido. Os filhos do caseiro, por já terem entrado na
mansão algumas vezes, vivam me contando sobre o escritório do senhor:
- Precisa ver, que coisa linda. Tem
um montão de borboletas, na parede, uma maravilha de se ver!...
E devia ser, mesmo... Ficava
imaginando como alguém pode ter tanto na vida: borboletas no quintal e também
em casa. Sonhava com o dia em que pudesse conhecer tal lugar, que devia ser o
próprio paraíso.
Mas acontece que, um dia, fui escolhido para ir entregar um litro na
fazenda das borboletas. Bati na porta, com pouca afobação; a empregada veio me
atender:
- Espera aí na sala, que eu vou
pegar o dinheiro. É mil, né?
- Sim, senhora.
E lá fiquei, na salona bonita da
mansão, aguardando a volta da mulher. Foi quando escapei os olhos até a porta
do escritório, que alguém havia deixado entreaberta. Fui me aproximando,
vagarosamente, e enfiei a cabeça para dentro, para poder xeretar melhor o
aposento. Só então vi os quadros, na parede: centenas de borboletas, grandes,
pequenas, azuis, amarelas, todas presas por um alfinete na camurça e penduradas
na parede com uma moldura. Assim, como se fossem pintadas, sem bater as asas
nem nada, sem perambular pelas flores; mortas, enfim.
Deixei-me invadir pela cólera cega
de quem não entende que graça tem em matar um bichinho tão bonito, e belo
justamente pela sua simplicidade de voar por sobre os campos floridos,
singelamente; de quem não entende como alguém pode achar bonito um quadro
não-pintado, senão por Deus, com a esperança de que vivessem sempre soltas,
vivas, vívidas; de quem não consegue entender como alguém, com toda aquela
riqueza, pudesse ser tão infeliz.
Recebi o dinheiro e fui me embora.
Desde então, nunca mais fui sentar-me à beira do riacho, para apreciar a
rotineira paisagem de alegria e cores. Talvez porque já não mais via alegria,
talvez por que já não via cores. Mas, certamente, porque já não havia mais
graça.
Tiago Bianchini - 14.05.1997
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