Queria lembrar aquela redação que eu fiz,
numa tarde de outono da quarta série, que recebeu elogios da professorinha
linda que estava substituindo a Tia Júlia. Aquela redação que eu fiz pensando
na professorinha, querendo e desejando que ela lesse e sorrisse; que fiquei até
de madrugada, todos querendo dormir e eu, com a luz do corredor acesa, de
bruços no carpete, caprichando na letra... Queria lembrar daquela redação, de
como era a história, de onde eu tirei as idéias, e, quem sabe, tentar lembrar
aquelas coisas que ninguém mais lembra, o nome da professora, a cor dos seus
olhos, o seu sorriso de satisfação.
Queria lembrar muito a poesia que eu
fiz, que falava de algum amor impossível, que tinha duas ou três frases de efeito,
e que resolvi mostrar para aquela amiga, aquela, que adorava meus escritos e
que me chamava de “poetinha”, sem nem enrubescer com o absurdo da comparação...
E disse: “Dá uma lida, vê o que você acha” e, sem a menor cerimônia, arranquei
a folha e lha dei. E ela, com um sorriso nos lábios, foi-se sentar num canto,
prestando atenção às letras desenhadas. E, depois de alguns instantes, ao
observá-la novamente (curioso para ver suas reações), a apanhei chorando,
soluçando, sem tirar os olhos do poema. E depois, quando se voltou a mim e
disse, trazendo de volta o sorriso: “Está muito bom, muito mesmo!...”, eu,
imediatamente, percebi que aquelas palavras e frases de efeito faziam muito
mais sentido para ela do que para mim, e disse: “Fique com ele prá você”. E não
fiz cópias, não atentei para a relevância que ele podia ter; eu, o insensível,
não percebi que aquele poema, aquele, mais que qualquer outro, havia mudado a
vida de alguém, e merecia ser guardado!...
Queria lembrar as coisas bonitas que
dizia para aquela namoradinha, quando estávamos juntos e abraçados e olhando as
estrelas... Aquelas coisas fugazes, bobagens de apaixonados, mas que soavam tão
bem!... Queria lembrá-las, ver se valiam a pena serem colocadas em papel, quem
sabe, para um dia virarem algum poemelho...
Queria tanto lembrar daquela
crônica, que fiz numa aula vaga da faculdade, e que falava de um velho, que
tinha a camiseta vermelha que eu copiei de um amigo que passava por mim na
hora, que se sentava numa cadeira igual à cadeira da cantina, que falava coisas
que ninguém jamais havia falado, que morria, enfim, no final da página, tal
qual alguém que havia morrido naqueles dias. Queria lembrar de novo do
velhinho, encontrar sua crônica, conversar com ele, ver o que mais ele poderia
me ensinar hoje em dia; queria, enfim, saber por onde anda aquelas páginas
arrancadas, por quais bocas a história tem sido contada e que reações as
pessoas têm ao ouvi-la pela primeira vez... Queria, eu mesmo, ouvi-la
novamente, achando ser a primeira vez, achando que a história é de outro, para,
afinal, poder tecer minhas críticas ácidas e mal-humoradas.
Queria, enfim, não esquecer as
coisas boas que fiz, as palavras que inventei de juntar, queria ter guardado
todos os rabiscos, todas as estrofes soltas, mesmo que em poemas improváveis...
Aquela crônica, aquela poesia, aquela redaçãozinha de criança – queria poder
voltar no tempo para recolhê-las, mesmo sabendo que, se pudesse voltar no
tempo, recolher escritos seria das últimas coisas que eu faria...
Mas, é claro, a vida anda. A
professorinha deve ter casado, envelhecido, enfeiado, talvez seja hoje uma vovó
senil e acabada. A colega de escola seguiu carreira como enfermeira, teve dois
filhos com o namorado, aquele mesmo do amor impossível, que a fez chorar tantas
vezes por qualquer bobagem. A namoradinha pode ter morrido, num acidente de
ônibus na Via Dutra, quando ia visitar os tios. O amigo já nem era meu amigo,
de amigo virou colega, depois conhecido, depois alguém que não me era estranho,
depois ninguém. O velho realmente nunca existiu, senão na minha própria
imaginação e de mais alguns poucos que o leram, e nem chegaram a ler por
inteiro. Aquelas palavras gravadas fazem parte do passado de pessoas que, como
eu, nasceram e morreram inúmeras vezes, encontraram-se e desencontraram-se;
fazem parte de um Mundo que hoje não existe mais, não faz mais sentido.
Tiago Bianchini - 23 de agosto, 2010.
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